Poesia antifa, a luta é verbo.

“Salvo raras exceções, os poemas inspirados pela Resistência, não são grandes poemas”, escreveu o ensaísta Georges Jean.

Foto: Inêz Oludé

Segundo ele, os poetas com preocupações sociais perdem a qualidade, são rasos, e na sua depreciação, sugere que o poeta não é um ser pensante, e que seria influenciável, logo, sem espírito crítico, reflexão, ou seja, sem autonomia. Fiz uma busca na Internet, para relembrar que desde Platão, os poetas são estigmatizados, malditos, criticados, Acusados de viver no mundo da lua.

À diferença da canção de protesto, do teatro e dos cantos revolucionários, a poesia dita engajada, de cunho político ou social, foi mal avaliada pelos literatos acadêmicos e críticos da literatura. Segundo eles, seria um gênero circunstancial, poesia passageira, simplista e sem estética.

Seria interessante saber se estes críticos leram os poetas que criticam ou se repetem  ad nauseam as falas de outros a fim de criar controvérsias, ou pior, manter os poetas numa espécie de aura por trás das nuvens de narcose, fora da realidade, como se fossem diferentes dos comuns dos mortais.

Os poetas são iguais a qualquer pessoa, o que os caracteriza é o uso da linguagem, eles têm as mesmas preocupações, os mesmos traumas, as mesmas feridas históricas, o mesmo papel no mundo e o mesmo destino final.

Poeta não é santo, nem deus, nem anjo, nem demônio, mas pode ser tudo isso. Empatia, antipatia, crueldade, bondade são dados a todos os seres. Ninguém escapa da condição humana, os poetas são humanos, logo não escapam da reflexão  do tempo presente. Os poetas engajados, estão atentos ao que acontece ao redor deles. Os poetas em tempos de opressão são testemunhas vivas, e enquanto as democracias recusarem ou não tiverem centros que abriguem os arquivos da memória do mundo, serão as caixas pretas, desmontando as narrativas negacionistas e os revisionistas.

As pessoas adoram criar mitos, passam da admiração ao ódio e se decepcionam quando descobrem que os poetas são iguais a elas. Os poetas não precisam ser inventados. Trabalho, disciplina, concentração, interesse pelo mundo que os rodeiam, curiosidade pelas coisas da vida, prestar atenção nas pessoas, conviver com as desgraças do mundo, ter empatia. O trabalho do artista engajado, é canibalizar as vivências e experiências, transformar em poesia, expressar nelas suas alegrias e tristezas. Sonhar, apesar de tudo, é o que faz de qualquer poeta, o que ele é.

Victor Hugo, afirmava que “o poema e o poeta têm potencial para transformar o homem e a sociedade, ao contrário de uma concepção puramente sentimental do gênero poético”.

As obras de centenas de grandes autores, da literatura universal, que tiveram alguma preocupação com o social, são exemplares e numerosas, Maxime Gorki, Dostoiesksky, Victor Hugo, Maiakovsky, Garcia Lorca, Primo Levi, entre muitos outros.

Em todos os movimentos ao redor do mundo, a poesia social, sempre esteve presente, e quem ousaria dizer que a Rosa do povo de Drummond, Morte e Vida Severina, o Navio Negreiro, de Castro Alves, o Romanceiro da Inconfidência, de Cecilia Meirelles, Poemas de abril, de Sidônio Muralha, a Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, que são poemas “menores” ou que eles sejam poetas medíocres? Pesquisem e constatem o que digo.

A circunvolução poética

Nesta coluna, tratarei de publicar uma vez por mês, a voz dos poetas brasileiros e de outras paragens, de ontem e de hoje, que usaram ou usam poesia como arma de resistência e luta. Principalmente os poetas das ideias progressistas e revolucionárias: comunistas, anarquistas, socialistas, guerrilheiros, ou seja, os poetas de esquerda. Homens e mulheres da foice e do martelo, mas não só, também os revoltados, antifascistas, marginais, periféricos, excluídos, anticapitalistas, engajados ou não. Enfim, o Humanistas que de uma forma ou de outra, mudaram ou tentaram mudar o mundo e me inspiram. Em tempos de obscurantismo, de medos e covardias, o nazi-fascismo batendo às nossas portas, é dever de todos de combater as tiranias.

Com todas as armas.

Pequenos deuses caseiros

Sidônio Muralha (Portugal 1920 – Brasil 1982)

Pequenos deuses caseiros

que brincais aos temporais,
passam-se os dias, as semanas,

 os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.

Pequenos deuses caseiros,

 cantai cantigas macias,
tomai vossa morfina,

perdulai vossos dinheiros,
derramai a vossa raiva,

gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros.

Erguei vossos castelos,

elegei vossos senhores,
espancai vossos criados,

violai vossas criadas,
e bebei, o vinho dos traidores
servido em taças roubadas.

Dormi em colchões de penas,

 dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem,

e alteai vossas janelas,
e trancai vossas portas,

pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.

Que é sempre um dia a menos

este dia que passa,
e cada dia a mais

aumenta o preço da traição,
e cada dia a mais aumenta

 o preço da desgraça,
e a nossa moeda

não é piedade nem perdão
porque foi temperada

com todas as lágrimas da raça.
Não,

pequenos deuses caseiros, não!

EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX

 AFFONSO ROMANO SANT’ANNA

Aqui jaz um século
onde houve

duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.

Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

Manoel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida

entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus,

era um homem.

Inêz Oludé da Silva, artista plástica, poeta antifa

Bruxelas, 29/10/2021

inezolude@gmail.com

Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos como tal pela autora, sendo por tanto de sua exclusiva responsabilidade.

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