A escritora mais mulher do mundo é um macho-raro, metido à besta ou “a escritor”

@1flaviocarvalho, escritor e sociólogo. @quixotemacunaima

Para Marcélia Cartaxo, com carinho. 

“Se eu ganhasse o mundo inteiro, de Amélia a Doralice. De Emília a Carolina, e os mistérios de Clarice” (Moraes Moreira, Meninas do Brasil).

<p class="has-drop-cap" value="<amp-fit-text layout="fixed-height" min-font-size="6" max-font-size="72" height="80">Eu tinha dezesseis anos e, mesmo não sendo bom de lembrar, daquele dia não esqueço pois foi o dia que no Banco Bradesco da Praça Maciel Pinheiro, no centro do Recife, o gerente me chamou pra assinar o primeiríssimo emprego da minha carteira profissional. Saí do Teatro do Parque – onde um dia eu assistiria <em>Clandestina Felicidade</em>, com Adelina Pontual – e me falaram: é ali, na Praça dos Judeus.Eu tinha dezesseis anos e, mesmo não sendo bom de lembrar, daquele dia não esqueço pois foi o dia que no Banco Bradesco da Praça Maciel Pinheiro, no centro do Recife, o gerente me chamou pra assinar o primeiríssimo emprego da minha carteira profissional. Saí do Teatro do Parque – onde um dia eu assistiria Clandestina Felicidade, com Adelina Pontual – e me falaram: é ali, na Praça dos Judeus.

Judeus?!

Foto FC, Amaro Branco, Olinda, 2020.

Peguei boa mania de fotografia analógica em preto e branco e pagava mais caro pro famoso Alcir Lacerda revelar como eu queria. “Viu o vídeo do meu filho, sobre aquela escritora?”. Houve quem disse que era mentira, que Clarice “nem nunca” morou no Nordeste.

Quem é essa?!

Caetano Veloso diz que tem dois momentos de epifania marcantes: a primeira vez que escutou João Gilberto tocando Chega de Saudade e o dia que leu e descobriu Clarice numa revista que o seu irmão Rodrigo lhe presenteou. 

Clandestina Felicidade (título do seu livro invertido) é o nome do filme sobre Clarice na sua criancice. Fui figurante acidental de uma cena de carnaval em Olinda, pertinho de onde eu morava. 

Décadas mais tarde, no Consulado do Brasil em Barcelona, o embaixador Naslausky pediu-me um favor. “Nesta tarde, entregaremos a Ordem do Mérito Cultural do Brasil à catalã Carme Balcells, editora de Vargas Llosa e García Márquez, e ela só fala de Clarice Lispector. Não foi você quem me comentou sobre um tal livro dela?”.

Depois que a Balcells me desse bola por eu ser o único naquela sala que falava catalão (ganhei dela uma biografia escrita por outra catalã chamada Laura, “o nome da galinha de Clarice”, segundo Carme), chegando em casa, em Barcelona, escrevi um conto chamado Lis, lembrando uma estória que me contaram na Praça dos Judeus, no Recife. Vomitei no papel, à lápis (como eu mais gosto), esse conto sobre a infância da escritora, da qual eu trouxe cinco livros do Brasil pra Europa. Guardei-o, o meu conto, sem muito gostar.

Durante anos, na festa catalã de Sant Jordi, Dia Mundial do Livro, vendo os meus livros já lidos e uns quantos mais, em cima de uma mesa improvisada na calçada do Paseo de Gracia. A única vez que eu vendi cinco livros de uma só vez foi a um catalão que me deu, em retribuição, um livro de Clarice entrevistadora. Naquele livro, a melhor de todas era sobre uma entrevista que, de fato, não aconteceu.

Corri pra casa, acabei o conto. E dessa vez gostei. Digitei e mostrei pro meu professor de escrita criativa. “Está em português”, avisei-o, em castelhano. “Eu nasci na Galiza e posso ler em português”, gentilmente me respondeu. Disse-me haver gostado e eu lhe dei um livro de poemas de Chico César, em galego, autografado pelo paraibano. “Podes trazer-me, agora, algo sobre essa escritora?”. E eu já não tinha mais nada dela. Ninguém é perfeito.

Pra arredondar, acrescentei, ao meu mesmo conto, uma história sobre a agonia de Clarice nos jantares diplomáticos do seu marido, explicada por um vice-Cônsul que dizia haver conhecido o ex-marido de Clarice, apresentado pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto quando este morou em Barcelona.

Foi assim que, da menina Lis no Recife, ao não-jantar com o (meu compositor predileto) que virou o meu escritor predileto – desacompanhado do poeta menos diplomata do mundo, Vinícius de Moraes, passando por um delírio assassino de Clarice sob um branco-diplomático, engravidei do meu primeiro livro. O nome da criança, Paraula (Palavra, em catalão), foi também responsabilidade da escritora (“inquestionavelmente brasileira”) e judia. E, por isso, a citação inicial é dela: a palavra é o meu domínio sobre o mundo.

Recentemente perguntado sobre Clarice, Buarque, o do não-jantar, o predileto, sentenciou (como costuma não acabar algumas frases, entregado ao riso): “outro dia disseram que essa bobagem da minha alma feminina era por causa dela e daqueles nossos misteriosos encontros; grande mentira, pois naquela época eu, com vinte e dois anos, nem a havia lido, nada dela, ainda”. Vinícius de Moraes, por sua vez, disse que qualquer livro de Clarice, quando presenteado, torna-se uma potente arma de sedução. Já provei e deu certo. Garanto e assino embaixo. Viva Lispector!

Longe de comparações, eu só achei que tava pronto pra auto-editar aquele meu livro no dia que me disseram (uma amiga escritora e editora) que eu era tão metido à besta e atrevido como um macho-raro (palavras dela) que escreve sobre (e por) Clarice, a escritora mais mulher do mundo.

Pois então, o que danado é ser mulher?

GOSTOU DESSE TEXTO? Então não deixe de assistir a homenagem online aos cem anos de Clarice, que acabamos de gravar.

Nela, histórias como essas, Laura Freixas, a biógrafa espanhola de Clarice (em Madri); Lola Mondéjar, psicanalista clariceana e escritora e professora de escrita criativa (em Múrcia); Claudia Nina, talentosíssima escritora brasileira, doutora em Letras em Utrecht (no Rio de Janeiro); Viviane de Santana escritora brasileira, autora dos boníssimos Estrangeiro de mim e de Viver em outra língua (de Berlim); Tali FG, diretora do Portal Desacato (da República Dominicana); Michel Croz Martins, teatreiro e escritor, de Desacatando Livros (do Uruguai) e esse rapazinho aqui (daqui de casa mesmo). 

Puigdàlber, Catalunha, 10 de dezembro de 2020. Pra CEM Clarices. Como se fosse na Praça dos Judeus, no Recife.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »