Os três renascimentos de Jean Wyllys. E o poder curativo das lágrimas da Ave Fênix, em Barcelona.

Por Flávio Carvalho

Foto: Flávio de Carvalho

“Não se espante, cante, que o seu canto é minha força pra cantar”. Gonzaguinha

“O homem que se levanta é ainda mais forte que o que não caiu”.

Viktor Frankl, neuropsiquiatra, sobrevivente aos campos de concentração nazista.

Imagine o filme de terror. Sabe o que é um “corredor polonês”? Agora pense que, depois de um voo de avião cansativo, no desembarque, você procura e não encontra os cinco guarda-costas que sempre te acompanham e que deveriam estar te esperando, encarregados de proteger sua vida. Decidido e cansado de esperar por eles, você caminha seus próprios passos, passa no meio de dezenas de pessoas que te ameaçam fisicamente, te gritam insultos impronunciáveis. E você, que sempre se imaginou uma pessoa de desmedida coragem, enfrenta um instante de desconforto que te parece eterno. Ao sentir-se quase salvo, pega o primeiro táxi que encontra. Entra no carro e o taxista te diz: “Você é o Jean Wyllys? Pois o Bolsonaro vai te matar”.

Assim nos explicou ontem, aqui em Barcelona, como costuma abrir seu coração, sempre de forma sensível. Quando, por exemplo, diz que ainda tem imensa dificuldade de falar sobre Marielle Franco. “Eu não consigo falar do que ela hoje significa para o mundo, depois de ter sido assassinada. Eu só me lembro dela muito viva, como a pessoa que eu conheci de muito perto, antes de tudo isso”.

O ex-deputado e hoje exilado político em Barcelona, apresentou o filme documentário “Entre Homens de Bem”, no Festival de Cinema LGBTI – Amores On Fire – realizado no que eu considero o mais importante centro cultural de Barcelona, o CCCB. Um dos maiores Centros de Cultura Contemporânea de toda a Europa.O que é então um exílio político? É antes de tudo, em política principalmente, questão subjetiva, de sentimento, de como nos sentimos (inquestionável, portanto – somente se há de respeitar). Mas ao mesmo tempo uma questão objetiva: é amor à vida ou a si mesmo. Portanto, longe de fugir, é um ato de valentia que poucas pessoas ousam enfrentar: o enfrentar-se a si mesmo, preparando-se para o reencontro mais profundo, o olhar para dentro, ao sair do país e da sua própria zona de conforto. Linguagem antifascista, eu sei. Incompreensível para qualquer fascista. Estou falando grego para eles, eu sei. Mas não é bem com eles que eu quero hoje falar.

Desde que vim morar na Catalunha, costumo pensar na complexidade essa: no fundo, todo migrante é um exilado de algo. Na maioria das vezes, de si mesmo. Portanto, depende de si próprio para viver, voltar, seguir… O exilado político não foge da morte ou de uma prisão injusta. Está em busca da liberdade (dele e nossa!). Buscar algo é muito diferente de fugir.

Quando eu conheci Jean, em Berlim, percebi nele essa honrosa carga de sinceridade, de falar com o sentimento. “Bonita camisa”, foi o primeiro que me disse, desarmando completamente todas as perguntas políticas que eu havia me preparado para fazer pra ele – e evidentemente não fiz. Surpreso, fiquei olhando para as flores da minha camisa e decidi fazer com ele essa foto e pronto. Eu tinha certeza que logo, como de fato ocorreu, voltaríamos a nos encontrar.

“Eu não quero hoje aqui, em Barcelona, falar da política, do que está acontecendo por aqui”. Foi o que ele explicou, ontem também. Imaginem-se agora na quarta noite em que Barcelona está pegando fogo (literalmente!), com a foto de uma menina com o olho arrebentado por uma bala de borracha da polícia (a menina perdeu para sempre essa visão), pelos protestos gerais contra uma sentença judicial que joga a liberdade de expressão na lata do lixo, na Espanha, e mais um artista (cantor de Rap) jogado na prisão por dois anos por “injúria à corona” e “exaltação ao terrorismo”! Saindo daquele encontro com Jean, helicópteros da polícia sobrevoavam Barcelona, um grupo de jovens desafiava todo um batalhão policial, e eu pensava no que poderia haver levado um “animal político” como Jean a esse cuidado, agarramento maravilhoso à sua própria vida? Seja o que for eu acho digno de um exercício que todos merecemos e deveríamos ousar fazer. O bom político cuida do mundo dentro de si.

Tempos atrás, eu mandei um e-mail pra ele com duas mil perguntas políticas. Ontem mandei outro, desdizendo tudo o que eu disse e pedindo a ele pra “somente” falar das suas pinturas, que tanto tem me impressionado (emocionado, pra falar a verdade). Perguntando se ele não toparia cantar num Sarau desses que a gente faz aqui em Barcelona. Foi esse, aliás, o primeiro comentário ontem da plateia, por parte dos que estamos nos acostumando a vê-lo espantando seus males, cantando. E pra fazer graça com outro “elemento artístico” que aparece no filme onde Pedro Bial insiste em chamar Jean de Professor, perguntei por outro comentário também revelado pelo próprio Jean: quando fará o tal filme onde interpreta Jesus? Em irônica resposta a uma das Fake News que mentiam que Jean estava gravando esse filme. Como aquela outra mentira: Jean haveria apresentado um projeto de lei para reescrever trechos da Bíblia.

Pois sim. É exatamente isso o que ele está se dedicando atualmente a estudar, aqui em Barcelona: as Fake News e suas relações com os golpes contra a democracia.

Creio que ressurge das cinzas, pela terceira vez, Fênix renascendo. Claro que Jean, como o Homem de Exceção (aprendi com sua amiga Tiburi), fala abertamente de depressão.

O primeiro renascimento está relatado no documentário. E pelo qual a minha amiga Dai Sombra pôde ontem lhe felicitar pessoalmente. A ancestralidade queimou seu dedinho ainda bebê com o pingo de uma vela entre seus dedos, possibilitando um grito de dor que alertou aos médicos que já acreditavam que aquela criança, nascido num ambiente de muita pobreza, já estaria encomendada aos céus. “Renasceu” Jean, pela primeira vez.

Logo, eu acredito (minha opinião!) que aquele taxista, ao ameaçar-lhe, “Bolsonaro vai te matar”, prestou-nos, a Jean, a mim, ao país, ao mundo, um grande serviço. No hay mal que para el bien no venga, sempre digo o que muito escutei por aqui. Foi a terceira vez onde, sempre em minha opinião, Jean Wyllys renasceu.

Deixei o segundo renascimento de Jean, propositadamente, para o final desse texto.

Ouso comparar. Uma das possíveis soluções para o nosso país, Brasil, é fazer terapia.

No dia que o Brasil reconhecer e assumir suas próprias debilidades, deixar de achar que é o melhor país do mundo (que, para algumas outras coisas, é sim; mas para muitas coisas, claro que não – como quase tudo na vida), e deixar de fingir que não tem os seus gravíssimos defeitos (quem sou eu pra dizer? Não serve. É o próprio, na terapia, que se há de perceber), o “milagre” pode acontecer. Reconhecer e assumir: é o melhor caminho para algo acontecer.

Digo isso olhando tanto pra minha extrema direita (que eu prefiro, sem hesitar, denominar Fascista), mas também com respeito eu olho pra minha esquerda, quase de forma preferencial, pelo imenso carinho que sinto. Eu, de fato, começaria por aqui.

Ontem Jean falou uma coisa que me bateu lá bem fundo.

Ele estava na final do Big Brother Brasil e aquele detestável circo da Globo deu-nos uma pista muito precisa, mas que pouca gente percebeu, na sua vitória. Cada qual com seus preconceitos. Quer não ver algo? Use os filtros do preconceito, já sabendo o que vai perder.

Quando Pedro Bial chamava Jean de Professor (durante quase todo o programa), misturava ironia finíssima com uma provocação. Pela primeira vez na história, um homem assumidamente gay, racializado, orgulhoso da origem na periferia da periferia do interior da Bahia (Alagoinhas), entrou na casa da maioria dos brasileiros. Provocou a maioria silenciosa – cuidado com esse conceito! – do quinto maior país do mundo a pronunciar uma frase que bem ou mal entraria pra história do maior país capitalista do mundo: yes, we can.

É claro que já vimos que “não podemos” (aquilo que realmente mentimos pra nós: “será que realmente QUEREMOS?”), elevando nossa própria hipocrisia à máxima potência.

Jean Wyllys superou dentro da casa do BBB todos os desafios possíveis e ganhou o primeiro prêmio de um milhão de reais, naquela noite histórica que eu me lembro como se fosse hoje. Venceu por um segredo que ontem pensou que estava nos revelando, mas que muitos de nós já sabíamos.

“Eu não nasci naquele programa de televisão. Eles pensavam que sabiam quem eu era. Carregaram todos seus preconceitos pra cima de mim e por isso erraram o alvo, toda vez que atiraram contra mim – naquele Paredão do BBB. Pensar que já sabemos quase tudo contra o que nos enfrentamos é o pior erro; e faz com que o nosso oponente possa nos vencer. Assim, o nosso principal desafio não é vencer o adversário: pode ser o vencer a nós mesmos”.

Atenção. Essa é a minha interpretação do que ontem escutei da boca de Jean Wyllys, aqui em Barcelona e ele não me disse nada absolutamente da forma que está escrito no parágrafo anterior. Algo bem parecido, sim. Esta é a MINHA percepção. E por isso recomendo ler o seu livro autobiográfico, com o mesmo prazer que eu li. O melhor: me diverti e aprendi.

Foi a segunda vez que Jean Wyllys renasceu. Daquela vez, diante da audiência televisiva de milhões de brasileiros, naquele detestável programa da Globo, o BBB. Mal para o bem.

Mas vem muito mais Wyllys por aí. Renascer, para ele – eu acho que é isso que se confunde com Vencer.

– O nome do programa de TV vem do excelente escritor e guerrilheiro antifascista, o inglês George Orwell. No seu livro, 1984, a ditadura do Grande Hermano, com suas câmeras espalhadas por todos os cantos, pensava que já sabia tudo sobre os revolucionários que lutavam pela própria liberdade. O erro principal de qualquer ditadura é esse: subestimar a capacidade criativa do povo para enganá-lo. É assim que vamos derrotar o fascismo brasileiro, representadíssimos todos nós (eu, pelo menos, me incluo), na cusparada que Jean lançou contra o então deputado Bolsonaro, dentro do Congresso Nacional. Todo sentimento será sempre legítimo; desde que saia, realmente, DE DENTRO. Cuspir é, no fundo, sentir.

A minha florida camisa, Jean, é da marca Período Fértil. Uma pequena empresa familiar, de amigos artesãos de Olinda, minha cidade. Conheci os criadores da Período Fértil, Márcia e Klezinho, antes da fama. Logo, apareceram mais ao mundo, depois de vestir Chico Science & Nação Zumbi. Aqueles artistas que lembraram o sentir “pois há fronteiras nos jardins da razão”.

Aquele abraço.

Flávio Carvalho. Barcelona, 20 de fevereiro de 2021.

“Publicado originalmente em Desacato.info. Portal onde o autor é colaborador”.

Os artigos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião da FIBRA.

Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya

@1flaviocarvalho, sociólogo e escritor. @quixotemacunaima (siga-me no Facebook).

Talvez você também queira mais

Translate »