Por Flavio Carvalho, para o site da FIBRA.
Sociólogo e escritor, residente em Barcelona.
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Barcelona, 31 de agosto de 2024.
Em 1991, Paulo Freire já usava a linguagem inclusiva. Boulos tinha 9 anos.
Guilherme Boulos, candidato a prefeito da maior metrópole da Abya Ayla, não inventou a linguagem inclusiva, nem um novo hino nacional.
Boa parte da esquerda brasileira tem um medo sobrenatural de perder Poder Político. O Poder próprio, que pode até ser pouquíssimo (“eu também sou pobre, pôrra”), mas que também pode ser um “privilégio” (aquilo que tem gente que não tem, nenhum!). Um medo danado – “o medo dá origem ao mal” – de dois tipos. Explico.
Um medo “normal” de perder poder político para o fascismo. E isso acaba explicando determinadas atitudes beeeem à direita. Sempre de olho nos meios de comunicação beeeem de direita. E de olho no voto do votante de direita.
Outro medo, “anormal”, a meu ver, é o medo de perder o próprio poder. Um poder que se retro-alimenta, narcisicamente, faz tempo, dentro da esquerda. Meio “sem perceber” ou sem querer, querendo. Ou, pior ainda percebendo, mas sempre fazendo de conta, hipocritamente, que nem sabem que conserva esse poder, sim. -“30 anos na frente desse sindicato, minha querida jovem negra trans, e agora vem você querer me dizer, a esse velho comunista, que lutou contra a ditadura, pôrra, o que eu tenho que fazer?” Por isso, morrem de medo, os companheiros (claro que não admitindo isso), de serem substituídos, reciclados “como um móvel velho” e sem o devido reconhecimento. E ainda sendo chamados de privilegiados. Que o são, mas não querem ver. Aliás, que Somos. Sim. Eu, pelo menos, admito.
Adotaram (aqueles que acham feio o que não é espelho), uma velha estratégia da direita, acusando-os, aos “outros”: a diversidade, o diferente, a novidade (como se isso fosse novidade para alguém). São Identitários. Deveriam ter se dedicado mais aos livros, como os meus. Assim, desta forma, quem não entra nesse campo, o dos privilégios, os chamados de Identitários, acabam sofrendo dos dois lados.
O Henry Bugalhos, por coincidência um homem branco (perceba como são todos iguais), universitário, intelectual de esquerda, privilegiado, mora na Europa, com muitos seguidores nas redes, acaba de dizer que esses identitários, ridículos, entraram na onda da Guerra Cultural, outro conceito alcunhado pela direita dona das marcas registradas mundiais. Só faltava a tal da pessoa “identitária” ainda ter que pedir desculpas por terem lhe identificado (de fora pra dentro dele) assim. Por essa pessoa gritar muito. Por assustar. Por querer cantar um hino de uma forma diferente. Criminosa, segundo o mencionado intelectual, citando a lei nacional dos símbolos pátrios. Porque a direita pegou. Porque Bolsonaro…
Sofre “a pessoa identitária” pelo N4z1F4sc1smo, que os quer assassinar, exterminar, nem os quer ver, era melhor que nem existissem. E do outro lado, sofre por levar porrada daquela “boa parte” da Esquerda que diz que lhes estão atrapalhando o caminho rumo à revolução socialista. Dividem a classe. São ridículos. Fazem o jogo da direita. Os confunde com os votantes da Kamala Harris. Misturam tudo. Como não percebem esse grandíssimo absurdo?
Gritam-lhes, os Comunistas de(dA) Verdade, que o certo seria sentarem e esperarem, calminhos, dóceis, mais um pouco, essas pessoas “identitárias”. Que guardem isso somente para si. Pois o revolucionário, depois de tudo, isso sim, pode também, transversalmente, jamais pelo centro da questão, poder ser um novo macho desconstruído, um branco antirracista, que já trocou a palavra Índio por povo indígena, que não cospe em pessoas trans e até comprou, ontem, pelo Amazon, uma bandeira da Palestina. É que depois de resolvida a grande luta, A Luta de Classes, aí sim.
O problema é que isso é o mesmo que dizia a esquerda brasileira, o universitário vanguardista na favela, em 1991, em 1971, os líderes homens da Revolução Russa para as operárias feministas que trabalhavam mais horas que os homens, as sufragistas, para Angela Davis na cadeira, para Mandela preso, que tivessem paciência. Por mais que estes admitissem que era compatível concordar com a luta de classes mas que o que não gostavam é que não se falasse, nem um pouquinho, sobre essas dores que o líder branco talvez não sentisse igual que eles.
Antes de vir essa tal feminista negra criar o conceito de Lugar de Fala, complicando tudo mais ainda. Tá vendo? Que perda de tempo! Com o detalhe de que o intelectual de esquerda, narcísico sentencia, sem nem perguntar: “vocês” são alienados, sem leitura, fazendo o jogo da direita, dividindo-nos. E logo se defende: quando no fundo não há incompatibilidade entre uma coisa e outra, pelo contrário, há complemento, nem enxergam que até o Marxismo clássico admitia a existência de todas essas lutas, claro, sem adivinhar o que viria no futuro. E ainda por cima com os velhos preconceitos, os da época. Mas não se pode ter tudo. Há que escolher-se. E na hora de escolher, melhor que sejam escolhidos “os meus”. “Deixa que a gente te engloba”, sentenciam, enfim.
Aí sim, dizem eles, quando o comunismo (Branco? Hetero? Cisnormativo? O de sempre? Qual?) finalmente chegar, a gente pode voltar a falar dessas tolices. E pedem que votem, novamente, numa maioria branca, homem, hetero, cisnormativa, na de sempre. Pois se dizem comprometidos, sensíveis e que anotaram suas demandas, para quando a revolução, finalmente, tiver vencido. Até escolheram, no meio de tanto branco, um ou outro preto. Percebeu?
Imagine-se agora uma mãe negra, favelada, com 8 filhos negros chorando de fome, a milícia batendo numa porta e a polícia atirando na outra, e esse branco lhe pedindo paciência. E que leia mais Marx depois que a molecada estiver, finalmente, dormindo. Com fome, mas dormindo. E se ela protestar, a mãe negra, dessa incômoda forma diferente, vendida, ele a chama de Identitária. Isso, de Identidade, que ela ouviu falar um dia, na Internet, sem nem saber ao certo o que isso quer dizer. Identidade para ela sempre foi aquilo de RG.
E pronto. Ele a entende como “vendida”, iludida, alienada. A ser dirigida. Pela Vanguarda. Ela o entende como um F4sc1sta de esquerda. “De Merda”, de fato, é o que ela tem vontade de dizer. Mas se cala. E somatiza. Porque o que não se fala, também adoece.
Aliás, sobre curar, quer falar mais de dor? Aonde queremos chegar com tudo isso?
No início dos anos 90, eu, Flavio, estava numa assembleia do Sindicato dos Professores de Pernambuco (assim se chamava, sim). Paulo Freire discursou em Linguagem Inclusiva. Referiu-se todo tempo ao Sindicato das Professoras, dialogando com o incômodo, indignado, de uma minoria de esquerdo-machos (ainda não existia essa expressão) na mesa diretora do sindicato. Mais de 90% das professoras, as sindicalizadas, as presentes, nas salas de aula, eram todas mulheres. Estávamos em 1991. Ocorreu o mesmo que agora, depois do comício do Boulos, em São Paulo. Com essa coisa ridícula de Linguagem Neutra e o cacete. Você escutou o que falou sobre isso, na Globo, a Michele Bolsonaro?
Mas em 91 não era uma mulher negra, muito menos trans, ou indígena. Era Paulo Freire.
Ainda bem. Até quando, isso? Aceita meu desafio de debater sobre isso? -“Mas, Flavio, você mesmo é homem, branco, hetero cis normativo, privilegiado. Porque fica se metendo nisso?”
Por isso mesmo, companheiro. Por isso mesmo.
Aquele abraço.
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