Terra Quilombola. Um novo marco brasileiro na luta pelos direitos das comunidades tradicionais.
Autor: @1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e escritor. Catalunha, Salgueiro, 20 de março de 2021.
Conceição das Crioulas é um dos mais importantes Quilombos brasileiros, do ponto de vista da luta pela terra, associada a um processo educativo Freireano, de educação de base.
ASSISTA AQUI a Entrevista completa com Givânia Silva, exclusiva para a FIBRA:
O Vídeo dura apenas 20 minutos (e nele há uma breve interrupçao de poucos segundos, que vale a pena esperar e seguir até o final).
Eu conheci Givânia Silva como educadora de uma escola maravilhosa, no Sertão de Pernambuco, município de Salgueiro.
“Bem-vindos a este hospício. Aqui somos todos loucos. Uns pelos outros”. Era uma placa na entrada da escola. Impactante e verdadeiro. Educação emocional na veia.
Éramos pesquisadores universitários, um bom grupo, orientados por um antropólogo (e padre progressista) que nos deixou muitas saudades, Frei Tito. A ideia inicial era fazer o tal laudo antropológico, que ajudaria no processo de posse da terra, ameaçado pelo latifúndio assassino que imperava no local. Mas, claro que transformou-se em mais do que isso…
As Crioulas, em minha opinião, deram um banho de conhecimento na universidade. O movimento social falou mais forte. Feminismo não era moda. Era práxis. A questão racial, como sempre deveria haver sido em todo o Brasil, não era “transversal”: era estruturante de todas as demais questões que mudaram a vida de toda uma comunidade. De fato, não me canso de dizer que a questão racial é hoje a mais importante possibilidade de mudar todo o nosso país. No dia que a gente mudar para essa percepção, já veremos como as coisas todas realmente começarão a mudar.
O que mais me chamou a atenção, em Conceição das Crioulas, era a autoestima elevada de toda uma comunidade. E com uma carga intergeneracional muito forte. Ancestralidade ativa e cultura juvenil com uma potência cultural impressionante. Um diálogo apaixonante. Não sem atritos. Mas todos construtivos. Construção coletiva de conhecimento era cotidiano de transformação em Conceição.
“Quilombo é uma invenção negra e feminina”, afirma Givânia, com muita propriedade, nessa conversa descontraída pelo Instagram. Atenção, pois a conversa perde conexão e congela por pouquíssimos segundos. E logo volta com a força de uma mulher que ainda merece ser mais reconhecida (conhecida – ao contrário do que ela, modesta, afirma – ela já é). O movimento quilombola no Brasil – ela jamais admitirá, por humildade – não haveria sido o mesmo sem Givânia. Quem ainda não a conhece achará: lá vem Flávio com exagero. Quem sabe do que eu falo, sabe que eu só digo por coerência.
Não digo somente porque somos amigos de muitas estradas de terra. Ela sabe.
Em Barcelona, assisti a uma atividade de representação de todo um coletivo indígena latino-americano, andino. Na sua apresentação, um vídeo realizado pela Universidade Autônoma de Barcelona, comparando movimentos sociais brasileiros e a articulação de lutas internacionais, em quatro continentes. Apresentou-nos, a este projeto, Joan Subirats, atual “Secretário de Cultura” de toda a cidade de Barcelona. No vídeo… Givânia! Conceição! O tenho em casa, o DVD, guardado com imenso carinho e respeito.
Em Salgueiro, no Sertão, assisti pessoalmente, um ato público em defesa dos direitos humanos do povo quilombola. Nele, no meio do ato, um fazendeiro, com um imenso chapéu branco, ameaçando-a, diretamente, a Givânia. Com uma arrogância e prepotência que hoje (em tempos desse novo fascismo) não impressionaria, mas que naquela época despertou muita revolta. Pois Givânia não é somente uma referência local. Quem a conhece tem sempre uma ideia de como essa mulher, menina, revolucionou a luta de reconhecimento de propriedade de todo um território.
Sem-Terra, reforma agrária? Sim, claro, também; Mas muito mais. O cadastrador do INCRA, da Reforma Agrária parecia que não entendia nada. Indígena? Não bem-bem, assim… “Senhor pesquisador, o senhor necessita, primeiramente, desconstruir alguns esquemas que lhe foram impostos pela educação formal deste país”. Como nos divertíamos! Os acadêmicos internacionais, também aqui na Europa, com imensa dificuldade de compreender a cosmovisão quilombola, transformadora, radical, de raiz. Outro papo.
Comece tudo de novo…
Vejam o brilho nos seus olhos neste vídeo, de Givânia, no momento que ela fala de como conseguiram, depois de muita luta (muita lágrima e muito sangue, podemos dizer) que a posse da terra das Crioulas, desde o tempo da vergonha nacional brasileira (a escravidão), nunca delas deveria ter sido retirada. Foi retirada a dente-de-cachorro, que era como descreviam as mais velhas da comunidade, explicando como haviam sido capturadas, com toda a violência do processo colonizador.
E terra, para uma Quilombola, como para todos os povos tradicionais do Brasil, não é somente chão. É coração.
O Dia Internacional contra a Discriminação Racial, no Brasil, pode ser que não seja tão difundido. Nós já temos nossos 20 de novembros, as farsas dos 13 de maios. Nós já temos Dandara. Sempre teremos Zumbi.
A AQCC, Associaçao Quilombola de Conceiçao das Crioulas pode ser encontrada na Internet e em várias redes sociais. A CONAQ é uma coordenação nacional de associações quilombolas.
Educação Crioula, o texto que ela menciona é uma joia. Paulo Freire se orgulha em qualquer céu que esteja.
Viva Givânia. Viva Conceição.