Por Flávio Carvalho, sociólogo e escritor da FIBRA.
16/10/2021
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“Respeitem meus cabelos, brancos!; cabelo vem da África, junto com meus prantos”
(Chico César).
Eu moro no reino da Espanha. Anteontem se comemorou o dia da hispanidade – como cada ano com bandeiras fascistas desfilando nas ruas de todo o país – em alusão à chegada de Colombo “nas Américas”. O Rei e a submissão dos partidos de uma suposta esquerda espanhola, festejam sua versão hipócrita da história colonialista: queimava-se três vezes uma criança escravizada a ferro ardendo em brasa, para marcá-la com a insígnia (o selo) do traficante, do navio negreiro e do proprietário brasileiro. E isso depois de sobreviver ao desgarro familiar e à travessia atlântica em condições de absoluta tortura. Mas se a ordem jesuíta lhe tratava com caridade, não lhe seria colocada uma quarta terrível queimadura de ferro em brasa (numa criança!) – embora continuasse escravizada e cumprindo a média de somente mais sete anos de sofrimento em vida, como se isso não fosse já uma aberração normalizada. Isso atribui à Coroa Espanhola – a que permanece desde a época medieval, com a mesma dinastia aristocrática, o direito de não pedir perdão pela horrível parceria genocida entre a cruz católica e a coroa monárquica? Não. E pior: além de não pedir perdão, ainda deve querer que lhe agradeçam os descendentes dos milhões de escravizados? Quem foi o selvagem e quem foi o civilizado? Quem diabos inventou que a Bíblia justificaria tanta desgraça?
Essa mesma história, repetida durante quatro séculos, é a que mais explica, a meu ver, o Brasil bolsonarista de hoje. Só não vê quem não quer ver. E tem muita gente que realmente não quer ver. Desde o fascista assumido, ao estrago do não querer ver – movido, sorrateiramente, dentro de um antifascista por aquilo que a psicologia social chamaria de memória seletiva. Esquecemos, propositadamente, em diversos graus de subjetividade, aquilo que pode nos prejudicar ou beneficiar, por mais invisível que seja esse benefício ou prejuízo. O Brasil sofre de memória histórica seletiva.
Evidentemente, o antifascismo ativo é o urgente: o parar os pés do monstro a sair de dentro do ovo da serpente. Porém isto não torna menos importante, o questionar a própria bolha, o atuar dentro da gente. A dor subjetiva queima tanto quanto um ferro quente. E não se minimiza por quem não sente.
Não é a injustiça em si o pior de tudo. O pior é a negação dessa existência, durante séculos. Em uma palavra: hipocrisia. Que pode fazer mais mal do que a própria verdade, escondida. Porque é o mentir pra gente mesmo, a pior das mentiras. Tanto quanto a verdade escondida sobre a vida de Esperança Garcia.
Por isso, podem me acusar de “antilulista” e de jogar pérolas aos porcos. Porque eu me sentirei contribuindo mais com a nova candidatura do Lula, do que muitos que se outorgam o famoso atestado ideológico de mais ou menos petista, quando eu revelo a minha dor, meu sentimento, ao haver escutado o Lula falar sobre “ser de todas as cores”, quando um entrevistador negro lhe exigiu um posicionamento não meramente estético, mas político.
Ao fazer isso (por ignorância, que não é pecado?) o único candidato hoje em dia por quem eu faria campanha antifascista pra Presidência da República do meu país, doeu em mim. Eu que não me ouso admitir como afrodescendente. E abriu mão, ele, Lula, de fazer a melhor das pedagogias políticas (um pleonasmo, uma redundância, na minha opinião), num dos melhores momentos em que se encontra.
Nos meus textos, encontrar-me-ei mais falando de sentimento do que de racionalismos, propositadamente. Isto é, para mim, o assumir uma intencionalidade política em si.
Afrodescendência, autodeclarativa, é uma carga de sentimento, mais que tudo, transmitida na luta contra quatro (4!) séculos de hipocrisia. Tem direito de falar dela, assumir, recusar, contestar, polemizar, debater, dialogar, qualquer pessoa que por ela se sinta subjugada, desprivilegiada, modernamente escravizada ou qualquer sentimento que queira expressar. E, por subjetiva, um único limite se impõe – felizmente ou infelizmente – à autodeclaração: o maior ou menor grau de hipocrisia de uma pessoa capaz de mentir pra si mesmo. Eu, por exemplo, não. Jamais a utilizaria nem que seja para defender-me.
E olha que eu sou neto dessa Mãe-de-santo aí da foto! E de merendeira que passou a maior parte da vida com um salário-mínimo. Mas não é de pobreza somente que eu estou falando. Eu estou perguntando se ao seu redor, ao meu, a miséria ou a riqueza aristocrática, tem ou não tem cor?
Ao perder a oportunidade de fazer mais esta “pedagogia política” (como tantas que já fez e assegurou-lhe o atual prestígio mundial) Lula diz que é “de todas as cores”. Como se as tais cores não importassem no Brasil de hoje, que Lula se postula a governar mais uma vez – como esperança para milhões de pessoas, como eu. É claro que desmerecer a luta antirracista não foi o que ele quis dizer! Mas é o que escutou e referendou essa atriz, Giselle Soares, a da Globo, que tanto se fala nesta semana, a que participou do BBB. É claro que a gente não tem culpa (sentimento judaico-cristão inventado a partir do mito de Eva), pois nem é disso que se trata, ao fazer ou não, Lula, tal declaração. Mas o oposto da culpa é o sentimento de responsabilidade: não importa o que Eu fale e sim o que o Outro entenda do que eu falei. Qual a relação entre uma coisa e outra? Pois então, não importando “isso das cores”, porque tantas pessoas reclamam? Qual a importância do racismo, então, na construção de uma sociedade injusta como a brasileira? Porque tanto mi-mi-mi?
Sabe qual é o problema? É que os que sofrem o racismo não pediram pras tais cores existirem (e nem te falo dos colorismos!). O racismo não pode ser lembrado como uma invenção dos que mais sofrem com ele, ao “simplesmente” admitir sua existência. Se lhes impuseram, desgraçadamente, os racistas, o racismo. Não se confunde vitimismo com a crueldade de impor o racismo, beneficiar-se com ele (“o motivo todo mundo já conhece; o de cima sobe e o de baixo desce”), e ainda exigir paciência de quem está perdendo a sua vida nas mãos de qualquer racista. A paciência do cara-pálida é genocídio pra índio.
Deliberadamente, as tais cores foram impostas por quem delas se beneficiou; e, estrategicamente, fingindo que não existiam. A pior mentira, não esqueçamos…
Portanto, é a admissão do racismo cotidiano, estrutural (ou como queiram chamar), a ÚNICA possibilidade de acabar com ele, destruindo-o completamente, desde a raiz. E não permitir que um grande político, como Lula, perca mais uma oportunidade histórica de falar “à imensa maioria do povo brasileiro”. Eu mesmo passei décadas da minha vida para encaixar na minha mente o fato da maioria do povo do meu país (e da população carcerária do meu país “por coincidência”) ser afrodescendente.
Mas o que é ser afrodescendente? Há dois tipos de valor pra isso: o da auto definição (a que já inclui, inexoravelmente, a exigência de Reparação Histórica, a que eu defendo); e o da cara-de-pau, hipócrita, de quem ainda pensa seguir beneficiando-se de uma injustiça banhada a sangue (negro e indígena).
É um não permitir que a Rede Globo assassine, conscientemente, a memória histórica que já havia condenado Esperança Garcia ao infinito esquecimento (se não tivesse sido o dinamismo pesquisador de Luiz Mott, a encontrar a famosa carta de Esperança ao Rei, no Arquivo Histórico de Teresina).
A mais importante advogada para história do movimento negro brasileiro foi redescoberta por um dos mais importantes pesquisadores da história do movimento de lutas LGBTQIA+, Luiz Mott. Isso é Brasil.
Pois tampouco se “permite” que o mesmo Lula faça uma foto (“como tantas que ainda farei em campanha, pela força do meu ofício de único candidato capaz de derrotar o fascismo assassino de hoje em dia”, em palavras minhas) com um pastor evangélico que prega o assassinato da comunidade LGBTQIA+. O estrago provocado por uma foto como aquelas reativa a extraordinária oportunidade de Lula sair em público, no dia seguinte, e dizer que equivocou-se ao fazer uma foto com aquele pastor fascista, como bom ser humano. E não de sair dizendo que “é de todas as religiões”, pois não é de cristianismo que estamos falando: é de homofobia, tipificada penalmente como crime, felizmente.
E de permitir a palavra perdão, tranquilamente, à boca de uma pessoa digna como o próprio Lula.
Tal como jamais se espera, esta mesma palavra, da boca podre de um indigno Rei da Espanha.
Viva Esperança Garcia! Aliás, um sobrenome espanhol como os tantos que nos foram impostos, para um nome freireano, daquele verbo esperançar.
Consulte o Dossiê da Esperança, completo e genial: https://esperancagarcia.org/dossie-esperanca-garcia/
E Viva Dona Hilda, minha afrodescendente (definição minha!) vozinha!