Essa conversa dá pano pra manga!
Texto de Dai Sombra Aisha, para o site da FIBRA
Barcelona, 12 de agosto de 2022.
Todo o ser humano tem um interesse natural de saber da vida de outra pessoa. Somos seres sociais e nossa experiência só é percebida com o atravessamento de outras pessoas na nossa vida. É impossível viver sem (con)viver.
Nosso interesse inato na vida alheia pode ter várias intenções.
Saber sobre a vida dos nossos pais, ouvir as experiências vividas de nossos irmãos, conhecer as histórias da nossa família … Tudo isso está inserido no nosso dia a dia há anos!
Para um melhor convívio social, seja na construção de uma nova amizade, no âmbito laboral ou afetivo, utilizamos do interesse de melhor conhecer tal entorno e pessoas para o melhor aproveitamento destas relações.
“Tá, mas isso não é fofoca!”
Ou sim! A fofoca consiste no ato de descobrir uma informação sobre alguém e posteriormente contar essa informação a uma ou várias pessoas.
Segundo o significado acima, quando você conhece aquela pessoa interessante e conta para alguma amizade sua sobre uma nova paquera, você está fofocando sobre essa pessoa.
Ou quando você ouve de alguém a história da sua família, também está sendo cúmplice da fofoca.
“Ah…mas não nos referimos à fofoca, em situações assim.”
Efetivamente! A fofoca é relacionada a falar mal. Aquilo que se comenta com o intuito de causar intrigas. Conversa sem fundamento, especulação.
Os exemplos que eu citei podem ser entendidos como conversas a partir de experiências vividas e/ou ouvidas e daí é normal que surjam nomes e experiências, mas dentro do escamo de ‘comentário’.
Porque se o que se diz é positivo, baseado em admiração e inspiração, é só um comentário. Ou seja, apenas opiniões sem julgamentos, ressaltando uma forma de pensar sobre dita experiência.
Entendemos a fofoca no ato de fazer afirmações não baseadas em fatos concretos, especulando em relação à vida alheia, mas também, em divulgar fatos da vida de outras pessoas sem o consentimento das mesmas, independente da intenção de difamação ou de um simples comentário sem fins malignos.
Mas o que seriam fatos concretos em um mundo onde nossas percepções do mundo são impalpáveis? Uma mesma experiência vivida por um grupo de pessoas em um mesmo espaço e tempo podem ter interpretações e aprendizados totalmente diferentes. O que é concreto para uma pessoa, pode ser abstrato para outra.
Deve ser por isso que a fofoca traz tanta intriga. Todo mundo buscando ser concreto em uma realidade hipotética da vida.
Se pensarmos nesse conceito na atualidade, onde as redes sociais para muitas pessoas é uma plataforma de expor sua vida cotidiana e o êxito que isso tem, podemos dizer que toda a humanidade é fofoqueira! Sim, incluindo você, rsrssrsr…
Mas eu me interesso mais pelo fundamento …
Dentro das minhas investigações afrocentradas eu encontrei o sentido original da palavra e o quanto esse conceito está colonizado.
Não podemos esquecer que aprendemos sob o dicionário português, onde muita etimologia foi apropriada, distorcida e/ou invisibilizada. Mas antes de apresentar sua origem vou contar um fato pessoal.
Eu resido há duas décadas na cidade de Barcelona e tenho familiares pela Espanha. Nesse caso específico, um dos meus irmãos, na cidade de Madrid. Nossa mãe vive no Rio de Janeiro e nossas conversas, se dão via telefônica. Ora com chamadas grupais ou diretas.
É comum nas nossas ligações conversarmos sobre a família. E dependendo do assunto, a escuta pode levar a intervenções diretas desde informações indiretas.
Exemplificando a questão. Eu posso ligar pra minha mãe lá no Brasil e contar algum problema pessoal pela manhã e pela tarde meu irmão, de Madrid, me ligar para poder me ajudar na solução. E essa dinâmica é circular e fluida.
Em nenhum momento vemos isso como fofoca ou comentário. Simplesmente como questões familiares onde algum de nós pode colaborar para dissolver a situação.
Mas se a gente pegar nosso significado linguístico e social atual e colonial, isso seria visto como fofoca.
“E se não é fofoca o que é então?”
É cuidado ancestral!
A palavra fofoca é de origem africana, mais precisamente da região entre Angola e Congo. Ela deriva do termo fuka, que no idioma Quimbundo, dos povos bantos, quer dizer revolver, remexer.
Para os povos bantus, a comunidade é um núcleo de cuidado e responsabilidade.
Em tribos como os Dagara, em Burkina Faso, o erro de uma pessoa é o reflexo do erro de toda sua comunidade, assim como seus acertos também são.
Uma das características que eu notei com meu entorno de pessoas africanas é que o questionamento de como vai a pessoa diante de si, e os membros da sua família, é muito recorrente até os dias de hoje. Isso é um rasgo de saber que se você está bem e sua família não, realmente você não está bem.
A experiência da diáspora africana para Abya Yala (América) foi de vida e morte. Só sobrevivemos a essa experiência com um sentido de cuidado comunitário que os povos africanos trouxeram para Pindorama, país que conhecemos como Brasil.
Esse cuidado comunitário se manteve e continua ativo em muitos espaços.
O pensamento colonizador fomentou a individualidade, o altruísmo e a independência. Para isso, uma pessoa deve acreditar que ela é sua única prioridade e que seu sucesso é o seu caminho.
O cristianismo, sempre de mãos dadas com a colonização, batizou conceitos com o monoteísmo, fazendo-nos acreditar que é somente entre Deus (branco, hetero e cisnormativo) e você. E tudo que interfere é inveja, competição e inimizades. Para acabar de criar o abismo, é só mudar a conotação da palavra Fuka e convertê-la em fofoca.
“Eu disse que essa conversa dá pano pra manga! Rssrsrsr…”
Quando criamos um espaço fraternal seguro, seja familiar ou amistoso, o que se dá é uma comunidade que se escuta, se apoia e se compromete a colaborar para a harmonia coletiva.
As experiências e aprendizados compartilhados fomentam o crescimento de saber de um povo.
Por isso a importância dos Griôs em comunidades africanas, onde no Brasil, muitas vezes se remete à função aos mais velhos da família, às avós ou a alguém que tem algum saber ou experiência para transmitir à sua comunidade.
“Então é Fuka ou Fofoca?”
Conhecer uma palavra nova não tem nenhum efeito se não há uma mudança de perspectiva e conduta. Criar um entorno onde haja a Fuka e não a fofoca só é possível com muito cuidado, respeito, sinceridade e sobretudo, discernimento. Há pessoas do seu convívio que operaram sistematicamente sobre o conceito da fofoca que conhecemos hoje.
Esteja atenta!
Também haverá aquelas que de verdade se preocupam com seu bem estar e queiram saber de e sobre ti. Saiba reconhecê-las!
Mas… antes de qualquer outra pessoa, você fofoca ou fuka?
Eu, misturei os nomes na terceira cabaça de Exu e na minha comunidade segura, eu afrofoko, pra cuidar e ser cuidada.
Salve o senhor da comunicação!
Dai Sombra Aisha é Produtora sócio-cultural, capoeirista, ativista antirracista Decolonial, Mulherista africana, poeta e escrevivente.
Acompanhe as mídias de Dai Sombra Aisha: @daisombraaisha
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Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pela autora, sendo de sua exclusiva responsabilidade e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.