Sobre o devir: que venha a alegria!

Por Selma Vital, para o site da Fibra.

23.12.2021

O poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira

(Gilberto Gil & Torquato Neto)

Uma das primeiras coisas que li esta manhã foi um e-mail comunicando o falecimento de uma acadêmica, que coordenava um departamento numa importante universidade aqui dos Estados Unidos. Embora fizéssemos parte de um mesmo grupo de interesses, eu não a conhecia pessoalmente. Mesmo assim, decidi ler o perfil dela e descobri que, além de falar inglês, sua língua nativa, e francês, sua língua de herança, ela também estudou latim, russo, vietnamita e japonês. E sonhava em aprender coreano e chinês. Fiquei triste pensando na interrupção do futuro, e nos sonhos não realizados.

De certa forma, cada vez que morre alguém com idade próxima à nossa somos confrontados com nossa própria mortalidade. Dessa vez, porém, o que mais me angustiou foi pensar o quanto nossos planos vão ficando meio que agendados para ‘quando for possível’, como se o futuro fosse algo com certificado de garantia.

Quando vejo companheiros nos dizendo que “em 2022 esse inferno acaba” a realidade do presente me chega como presságio. Como suportar ver o Brasil sendo detonado por mais um ano inteiro? Na velocidade de destruição desse governo, dá até medo pensar em tudo o que ainda pode acontecer, especialmente sabendo que órgãos decisórios importantes estão descaradamente sendo equipados e, quando não estão, começam a ser esvaziados porque profissionais éticos acabam debandando (como foi o caso recente com técnicos do Inep).

Quanta gente morreu em consequência do Covid-19 porque não teve tempo de receber a vacina quando já existia e podia ter sido comprada pelo Ministério da Saúde? Quantas pessoas vão sofrer sequelas da fome, que torna a população em extrema pobreza ainda mais vulnerável? Quantos ataques de “hackers” vão tornar os serviços de saúde pública inacessíveis? Quantos povos originários estarão cada dia mais ao deus-dará?

Os ataques aparentemente descoordenados do governo federal, como se cada abuso fosse isolado dos demais, chegam mesmo com um tsunami. É difícil ter noção sobre o que defender primeiro. Nem jornalistas especializados nem cientistas políticos parecem mais reconhecer o que é prioritário. Com pequenos intervalos ou simultaneamente a gente vê um vídeo sobre a interferência do dito presidente no Iphan para beneficiar o amigo Luciano veio da Havan Hang; o mesmo alucinado pede nomes dos técnicos da Anvisa que aprovaram a vacinação infantil; e seu governo manda-nos goela abaixo a desculpa esfarrapada do hacker que invadiu o SUS. Correndo na lateral tem a destrambelhada bolsonarista Carla Zambelli tentando passar uma lei que regulariza a caça esportiva. E olha que nem estou citando todos os absurdos para não esgotar a já combalida paciência de todos.

A tal da boiada, referida pelo ecocida Ricardo Salles, é mais que metáfora, é estratégia. Criam barulho ensurdecedor como distração enquanto a boiada nefasta passa em cima da floresta, da ciência, da cultura, da economia.

Mas, afinal, e o futuro? Não é sobre isso que me propus a escrever? É natural que a gente fixe o olhar lá adiante, sonhando com o dia em que tudo isso será pretérito. A própria Dilma Rousseff, ex-presidente, vítima de tortura durante a ditadura militar e alvo do Golpe de 16, conta que para suportar a tortura pensava consigo mesma, “um minuto mais, eu tenho de aguentar um minuto mais”. Será este o segredo? Suportar as injustiças e leviandades um minuto mais?

Não sei. Estou certa que não tenho um oitavo da coragem de Dilma e portanto muita dificuldade em vislumbrar a luz no fim do túnel; por outro lado, ser capaz de enxergar uma outra realidade, melhor e mais bonita, pode ser em si uma forma de atuar, de se levantar contra esse estado de coisas.

Parodiando o filósofo Spinoza, a alegria é ativa, a tristeza passiva. É fundamental sermos audaciosamente alegres. Acho que foi Joel Rufino dos Santos quem disse que é a alegria, não o amor, o que se opõe ao ódio. Então que a nossa conspiração para tornar 2022 um ano de virada, de saúde e de retomada do poder seja de alegria incondicional, inspirada por qualquer bom momento que nos caia na mãos. Vale beber da alegria da vitória de Gabriel Boric, no Chile; da alegria do encontro de Cristina Kirchner, Alberto Fernandez, Pepe Mujica e Lula ,em Buenos Aires; da alegria das crianças que serão vacinadas a despeito de todos os esforços contrários.

A Rainha Vermelha, personagem de Alice através do Espelho, de Lewis Carroll, tem uma fala clássica: “A regra é: geleia amanhã, geleia ontem, mas nunca geleia hoje.” Pois é hora de quebrarmos a regra e paparmos essa geleia agora, com todo mundo! Feliz 2022!


Selma Vital é jornalista e professora. Fez parte do Coletivo Aurora, de Aarhus (Dinamarca) e agora é membra independente da Fibra, morando na Carolina do Norte, EUA.

Acompanhe as letras de Selma:

Instagram: @selmadaclaraboia

Site (@svital): Claraboia

Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos como tal pela autora, sendo por tanto de sua exclusiva responsabilidade.

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