Já se nasce no jogo. A Capoeira do Pensamento de Tiganá Santana.

De Flávio Carvalho, para o site da FIBRA.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.

Barcelona, 23 de junho de 2023.

“A minha interlocução com o mundo.
Não diria que se trata de uma contraposição, propriamente,
em relação aos batuques e percussões fortes, mas de outra perspectiva negra
para se ler o mundo e apresentar-se a ele”.
(Tiganá Santana, em entrevista à Revista Caros Amigos)

Amadou Bocar Sam, um senegalês com quem tive oportunidade de trabalhar em Barcelona, ensinou-me a lidar melhor, na vida, com a conjunção alternativa OU. Principalmente, vindo de um país cheio de complementaridades, como o Brasil. Foi Gilberto Gil que definiu o nosso país como o do “isso E aquilo”; e não como do “isso OU aquilo”. Violão, por exemplo, é instrumento de corda ou de percussão? O músico e filósofo brasileiro Tiganá Santana, na minha opinião, vai na mesma boa linha. Foi aquele senegalês quem me orientou também a questionar se a base da filosofia ocidental não seria outra, se – além da matriz europeia e da primazia grega – houvesse buscado outras leituras, como as africanas, principalmente.

Leiam esta deliciosa entrevista com o Tiganá – das melhores coisas que eu escutei nos últimos tempos. Ele estará em Barcelona, em turnê internacional (Espanha, Portugal e Suécia). E, além disso, fará uma conversa especial, online, “Caros Amigos”, neste domingo, 25 de junho, com o nosso querido Jean Wyllys.

Em todas as entrevistas mais recentes, pedi sugestão de nomes recomendados pelos entrevistados, no final. Chico César fez uma lista imensa, maior que a entrevista. Luedji Luna fez questão de indicar somente artistas negras. Tiganá fez diferente. Eu, portanto, me atrevo a recomendar: integrem na sua vida Tiganá E Tiganá. Ou, não. Ele, eu recomendo. Além disso, dou um toque importante. O acompanha no show, ao Tiganá, o meu amigo Mû MBana. Prestem atenção neste nome. Sigam-no pelas redes. Acompanhem o seu talento. Mû, da Guiné Bissau, esteve no Brasil, recentemente. De onde acho que ele realmente sempre foi.

Com agradecimentos à Ana Bárbara e a Nits de Brasil.

Aquele abraço.


Tiganá Santana, Entrevista. Por Flávio Carvalho, sociólogo e escritor.


(Flávio) –  Tudo bem, Tiganá? Como está sendo o seu dia? Como foi? Como será?
(Tinganá) – Em geral, me dou muito bem com a vida que experiencio! Os dias são essa vida se dando… são bons mesmo quando não são!

(F) – Você estudou violão clássico. Logo criou estrutura própria. Quem são e foram as suas e os seus mestres musicais? O Houve circunda-se. Reverencie, por favor.
(T) – Foram diversos e diversas. Nem gosto muito de elencar essas pessoas, pois me faltarão nomes à memória… Mas vamos lá: de casa, o meu avô músico (que está chegando aos 98 anos de vida), os violões do tio Jorge e tio Luiz, a voz da minha mãe, o pandeiro e o berimbau do meu pai, as músicas dos Candomblés; de fora de casa, Pixinguinha, Caymmi, João Gilberto, Clementina de Jesus, D. Ivone Lara, Elizeth Cardoso, músicas tantas do mundo afora (de várias áfricas, ásias, américas).

(F) – Conhece o flamenco, sim? Bases musicais africanas reconhecíveis?
(T) – Conheço como ouvinte admirador, o flamenco, mas não como pesquisador. Precisaria estudar para lhe dizer com maior assertividade com bases musicais de qual África o flamenco se encontra. E isto no cruzamento, por exemplo, com os referenciais árabes naturalmente.

(F) – Violão é corda ou percussão? Esta pergunta é uma provocação.
(T) – Não me parece haver exatamente um “ou” na sua questão. Corda pode ser percussão.

(F) – Luedji Luna me comentou, aqui em Barcelona, que não gosta de falar de racismo o tempo todo. Mas que se sente na obrigação. O que me dizes?
(T) – Entendo, a partir do que a querida Luedji coloca, que o racismo, embora acabe por nos “definir” nas sociedades racistas (o que nos obriga, conscientes, a tratarmos do assunto-experiência continuamente, pois há que mudar, há que, inegociavelmente, morrer/matar o mundo racista), não nos define na nossa experiência alargada de existir.

(F) – Chico César, por outro lado, também aqui, nesta cidade, numa entrevista, revelou-me um segredo: há perguntas que ele gostaria que lhe fizessem (pois é disso que quer falar). Quais perguntas você gostaria de tentar responder?
(T) – Sobre criar, existir, viver, morrer, voar…

(F) – Fale-me das suas andanças, nacionais e internacionais, por favor. E das diferenças entre seus espetáculos, em territórios diferentes, se possível.
(T) – Foram e têm sido acontecimentos que enriquecem a minha experiência de vida e de estabelecimento de relações. Tenho enorme satisfação pelo fato de públicos que dividem e não dividem culturas comigo poderem se relacionar com minha música imergindo no que produzo (e nesse sentido, de modos equivalentes, até onde posso identificar).

(F) – Um filósofo brasileiro lê muitos livros – até mesmo os mais libertários – desde uma perspetiva indissociavelmente colonialista. É possível, hoje, no Brasil, construir uma nova dimensão filosófica a partir de novas bases?
(T) – Esta pergunta não é simples e nem sei mesmo se há para ela alguma resposta. É preciso perguntar, por exemplo, sobre o que seria essa nova dimensão filosófica, bem como o que seriam novas bases.

(F) – Expectativa e esperança são duas palavras próximas, mas ao mesmo tempo complementares. Uma e outra, para o nosso país, hoje, na sua percepção…
(T) – Expectativa nenhuma, nem em relação ao Brasil, nem em relação a nenhum outro território. Esperança em relação às forças de vida, que apresentam a sua dinâmica própria, as transmutações, o que se destrói e constrói, sem que se decifre linearmente o que seja viver (no Brasil ou em qualquer lugar). As coisas são simultaneamente encantadoras e terríveis, e a nossa dança transita constantemente nesse paradoxo.

(F) – Barcelona? Catalunha? Espanha? Europa? Comentas algo? Gostarias?
(T) – Histórias difíceis, histórias e presenças próprias desses territórios, colonialidade acesa, algum questionamentos dessa colonialidade cujos tentáculos se regeneram, e paisagens lindíssimas. Lugares interessantes, alguns amigos que nelas vivem. A Espanha é um belo país e, assim como o Brasil e todo o universo colonial, precisa pensar sobre racismo, sobre as suas práticas racistas (como, aliás, se viu recentemente com o episódio do jogador de futebol Vinícius Jr.).

(F) – Salvador, Bahia, Brasil, América Latina? Igual à questão anterior…
(T) – Territórios que me formaram, informaram, deformaram, e que, assim como colocado na questão anterior, precisam encarar o seu racismo, a sua pletora de problemas para pessoas que lá vivem. São lugares reais (não há aqui romantismos). Há beleza e encanto também, ao lado do que pode ser absurdamente indignante.

(F) – Como anda hoje (atemporal?) a capoeira do Seu pensamento?
(T) – Em trânsito; sem se fixar numa tendência, eixo ou corrente. Tenho tentado que ela se movimente com meu corpo e com como a vida me faz dançar.

(F) – O que Não podemos esperar da sua vinda, do seu trabalho, em Barcelona? E o que, Sim, podemos esperar?
(T) – Não se pode esperar que eu “faça” música sem querer fazer (para o público, exibirei o que sou ao lado dos músicos e amigos Leonardo Mendes, Ldson Galter e Mû Mbana). Podemos esperar música, que será tratada como a grande protagonista do nosso “enredo”.

(F) – Brasileiro no exterior com mania de ficar pedindo sugestão de bons artistas na nossa terrinha. Podemos acabar assim, esta conversinha?
(T) – Agora você me pegou… não sei bem ir por aí, não, meu caro! Deixo um grande abraço e os meus mais sinceros agradecimentos.


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Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pelo autor, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra

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