Dou-te três chances de adivinhar porque 2 de dezembro é o Dia do Samba.
Por Flávio Carvalho, sociólogo e escritor, para a FIBRA.
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“O pai do prazer. O filho da dor. O grande poder transformador.”
(Samba: Desde que o samba é samba, de Caetano Veloso e Gilberto Gil).
Wilson Moreira, agente penitenciário. Nei Lopes, advogado criminalista. Histórias escutadas dos presidiários, dentro da cadeia do Complexo de Bangu. Ano 1974. Violenta emoção era um termo usado por advogados defensores de machistas assassinos, naquele tempo que se argumentava “defesa da honra” (de relacionamentos supostamente envolvidos em traição). Violenta Emoção era o nome inicial da composição, do samba. Zezé Mota, artista que popularizou a canção, exigiu mudar o nome da música, “em positivo” (em feminino mesmo): virou Senhora Liberdade, nome lindo. A esquerda brasileira a adotou como hino contra a ditadura militar, naquele tempo em que não se conhecia a história da letra. “Viramos comunistas sem ser”, declarou Wilson Moreira.
“Também compomos Goiabada Cascão, nome de samba pra sobremesa de pobre. Mas não teve tanto sucesso quanto a Goiabada Cascão de João Bosco & Aldir Blanc”, disse Nei Lopes. A um jornalista da época, chegou a confessar que desconfiava do êxito daqueles dois últimos (sobre o seu), por serem mais “alvinhos”, aqueles dois.
A história do samba está repleta de casos de compositores populares absolutamente esquecidos ou preteridos, nos contextos em que os sambas foram desenvolvidos, em detrimento de “alvinhos” – por mais que os tais alvinhos não sejam racistas. Hoje se diz mais que não basta não ser racista; é preciso ser antirracista.
Senhora Liberdade tornou-se – “sem querer querendo”, junto com O Bêbado e a Equilibrista – outro samba de Bosco & Blanc, hinos de resistência à ditadura militar brasileira. E, logo depois, virou hino da frustrada campanha “Diretas Já!”, em 1984. Dez anos depois de criada.
Mas foi outro samba a lhes dar a glória. Gostoso Veneno era o nome do bar onde os compositores se encontravam, depois de perder o último trem. “De onde você tirou esse nome?”, perguntaram ao dono do bar – que nunca acreditou que aqueles dois bêbados fossem realmente os compositores!
A história do samba, cuidado, está cheia de estórias, escritas com a letra E.
Tinha que ser de Curitiba – pobre cidade a entrar pra história por sediar a Vaza-Jato – o escândalo que começou a encaminhar o país à atual barbárie, o desgraçado jornalista que inventou a fake news que quase matava Cartola antes do tempo. O Mundo é um Moinho, uma de suas mais belas composições entre tantas que fez, teria sido composta – pelo mais famoso sambista brasileiro – para a sua filha prostituta. Em princípio, muita gente cantou esse samba como uma história de amor supostamente vivida por Cartola, sem saber o machismo que ela um dia despertaria num jornalista medíocre como aquele curitibano. Creuzinha, filha adotiva do compositor, cantava no grupo de Geraldo Pereira desde os 14 anos, incentivada pelo próprio pai. Cantora e puta, naquela época, eram infelizes sinônimos, numa sociedade patriarcal. O Mundo é um Moinho fala, sim, da preocupação de um pai pela vida profissional da filha, não necessariamente prostituída. Creuzinha, sambista, filha de um guardador de carros que virou ícone do samba (depois de amargar anos de miséria, chegando a morar na rua), viveu anos com a amargura de ser chamada de trabalhadora sexual.
Esta música, O Mundo é um Moinho (vendeu mais, quando Cartola já estava morto, depois que foi gravada por outro alvinho, boa gente, filho de dono de gravadora) tem outra história, que colabora para a versão machista. “Os sonhos” da filha, descritos na canção, nunca foram “mesquinhos”. A frase distorcida, mal cantada, era – originalmente: “Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho”. Mesquinho era o mundo, e não os sonhos da menina. Tudo muda. E o mundo é mundo, quando quer ser.
O samba tem histórias, com H, e estórias bem ou mal inventadas.
O termo “samba”, afro-brasileiro, documentado pela primeira vez pelo padre Carapuceiro (Carapuceiro era o nome do jornal recifense, e Padre Carapuceiro virou nome de rua em bairro nobre da capital pernambucana, onde eu costumava ir a um bom samba), alimentou brigas intermináveis entre o Rio de Janeiro e a Bahia, sobre onde haveria “nascido”. Como nasce, um mito?
E, no meio de tudo, a realidade. O samba, tal como se conhece, pode até ter sido recriado no Brasil. Mas a sua raiz cultural, como muita coisa (jogada pra debaixo do tapete sujo do privilégio branco), é mais africana do que se imagina. E ancestralidade é algo que cobra vida. Exige. Dignifica.
Hoje, 2 de dezembro, comemoramos o seu dia, o Dia Nacional do Samba, desde o ano 1962.
Foi, portanto, o dia que Donga (Joaquim Maria dos Santos) e Mauro de Almeida, bons malandros, surrupiaram de outros quatro ou cinco (ou cem ou mil que o cantavam de boca em boca) o Pelo Telefone, e o registrou – o gravou – num dia 2 de dezembro? Que nada! É fake, isso da data da gravação do Pelo Telefone num dia 2 de dezembro. A glória, o gênio de Donga, isso não! É fato. Pelo Telefone, o primeiro samba gravado, é um marco. Foi gravado em 27 de novembro de 1916.
Foi, então, num dia 2 de dezembro, o dia que Ary Barroso pisou pela primeira vez na Bahia? Pode até ter sido, como pode-se ler em várias fontes de Internet (sem documentação, como tantas coisas hoje em dia). Mas não tem a ver com isso, que o dia de hoje comemore o que comemora. No Brasil, todo buraco é bem mais embaixo. Criam-se fatos para bajular, vender jornal, prejudicar…
O samba tem histórias e histórias. Mesmo que muitas com H maiúsculo. E todas somam para engrandecer o que a história (ela sim, a dos vencedores!) escondeu do próprio Brasil. O samba é filho da dor. É a África no Brasil. E por isso será sempre resistência cultural. Isso dele ninguém tira, a sua raiz popular, periférica, de um povo rico e empobrecido. O samba é o mais puro exemplo de que o Brasil é um país que precisa fazer psicanálise. O que tem de maior valor foi, propositadamente, subconscientemente, desvalorizado. O Brasil só será Brasil se, de verdade, mudar.
Porque? Porque ameaça, o Samba. É lindo e forte. É sensível, mas reivindica.
Perceberam que eu, alvinho, nem falei de compositoras mulheres? Não houveram? Mas, claro que sim!
O dia Nacional do Samba se comemora eu diria (pois pra quê ser o dono da verdade?) por ser o dia que se leu a Carta do Samba no último dia do 1º Congresso Nacional do Samba, naquele ano 1962, no Rio de Janeiro. Está registrado. Havia acadêmicos no Congresso. E foi assim que aquela data se impôs, de fato.
Tudo isso pra dizer que hoje faremos Sarau em homenagem ao Samba, em Barcelona, como desde já fazemos (é fato e está documentado), faz doze anos. Homenagens à Cartola, ao Chico Buarque, ao Paulinho da Viola… Hoje à Maré, ao Kunca (e à sua mãe), ao Edi, ao Valtinho… Tantas outras.
Doze é o número de sambas que eu – metido, como sempre – já compus pra dar de presente aos meus amigos músicos. Quando forem treze, número mágico da sorte (para o ano 2022!) eu lhes mostro. Por enquanto, Viva o Samba! Viva a Resistência Sociocultural Brasileira. Viva Zezé Mota.
Sem esquecer do “Fora”. Palavra que rima com “Vai t’embora!”, “Já passou da tua hora”.
Coisa de Bamba.
Viva aquele que se presta a esta ocupação: Salve o Compositor Popular.
(Festa Imodesta. Chico Buarque de Holanda).
Barcelona, 2 de dezembro de 2021, dia de outono de sol e vento frio.