Acabou com Bicos não, CUT Brasil!

Vem aqui pra ver o patrão comemorando a reforma espanhola!

Por Flávio Carvalho, para o site da Fibra
@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor.

Barcelona, 4 de fevereiro de 2022.

Não imaginei que em plena noite após aprovação da reforma trabalhista espanhola o meu telefone celular se enchesse de mensagens perguntando sobre o que havia acontecido no congresso espanhol. Foi aprovada? Sim. Pero… no. Assim posso dizer. Um voto errado do Partido Popular. Um erro desconcertante da presidenta do parlamento, socialista. Uma mudança de voto de última hora de um partido minúsculo. E a extrema direita (posso dizer fascista) ameaçando derrubar a atrapalhada aprovação política nos tribunais da justiça espanhola (posso dizer justiça franquista, herdeiros da “última grande ditadura europeia”). Lawfare não foi só pra prender o Lula. Aqui é cotidiano também.

A resposta da minha amiga Maria Dantas – brasileira e deputada no parlamento espanhol, logo que a perguntei pelo whatsapp sobre o que havia acontecido no Congresso foi sintomática e única: “-Exausta!” (estava exausta…). Ela e o seu partido, Esquerda Republicana de Catalunha, votaram contra a proposta do governo espanhol.

É fato que o conflito entre monarquia e república é pano de fundo nas relações entre as diferentes esquerdas que atuam em Madri (capital da Espanha, mais monarquista em geral) e em Barcelona (capital da Catalunha, cada vez mais republicana). Mas desta vez não se trata de uma disputa entre independentistas ou não. O marco da reforma laboral é o capitalismo (concentrado em poucos), em detrimento da imensa maioria do povo: a classe trabalhadora. Devo dizer que o papel do ERC foi decisivo nas negociações. Em minha opinião foi o partido que corajosamente melhor ajudou a explicar o porquê de posicionar-se contra algo que deixou ainda em mais evidência os campos de interesse das organizações trabalhistas espanholas: a favor ou contra a reforma trabalhista. De um lado, os dois maiores sindicatos nacionais (Comisiones Obreras e UGT) a favor da reforma. Os dois maiores sindicatos que mais falavam em subir o salário de determinadas categorias – as mesmas que possuem melhor capacidade de obter contratos permanentes para seus trabalhadores (assegurar o emprego e não a melhoria das condições de empregabilidade). De outro lado, os sindicatos chamados minoritários – os diversos e que mais crescem proporcionalmente. Contra a reforma trabalhista: o governo de determinadas Comunidades Autônomas, que são como os Estados da Federação Brasileira. Estão contra, os partidos mais à esquerda. Está contra a reforma o governo da Catalunha, a região que gera mais empregos e que é governada por ERC. Contra a reforma estão os ramos de trabalho mais precarizados (cujos contratos de trabalho são extremamente vulneráveis, chegando até mesmo a contratos de 1 só dia). Para estes, os mais precários, o embate deixava cada vez mais evidente que o que se discutia como opção era: mais emprego, pagando pior e com maior precarização das condições de trabalho, ou melhora das condições dos empregos que já existem, apostando contra a precariedade trabalhista.

Pedro Sánchez seguirá resumindo o que não diz. Sabe quando está tudo tão ruim que ficar como está pode ser o pior? Lamento informar que não é bem verdade: o que falta é coragem, ou aquela famosa vontade política para apostar que é possível não ceder às chantagens do mercado capitalista, o que segue influindo na política geral – principalmente por serem donos e patrões da grande mídia.

Na Espanha jamais se deveria falar de Lei Trabalhista sem falar da (ainda pior) Lei de Imigração. Pois afinal são os imigrantes que, segundo todas as estatísticas oficiais, acabam mais precarizados e “pagando os patos” das crises que ninguém sabe quando acabam e recomeçam, se é que acabaram.

A grosso modo, podem ler e reler e interpretar como queiram, mas este é, para mim, o principal resumo do que está acontecendo e vai aumentar: desta vez com um capitalismo selvagem e mais feroz, batendo no peito e brindando com champanhe ao dizer que não foram eles que apoiaram o governo socialista, e sim, que foi o governo socialista (apertado contra as cordas da governabilidade, é bom que se diga!), que apoiou a classe empresarial, os patrões. Se já faziam o que faziam, imaginem agora que se sentem mais legitimados por uma suposta esquerda que os apoia. E isso era tudo que não queria a cara B do Governo da Espanha, o Podemos. Gritavam para a ERC apoiar, e quase imploravam que não lhes deixassem sozinhos na foto com os barões capitalistas. Acabaram saindo na foto sorrindo ao lado dos capitalistas que dizem combater e que estão comemorando muitíssimo esta reforma.

Há que lembrar que foi promessa de campanha do atual governo “socialista”: revogar completamente a reforma e não fazer substantivos remendos. Como agora que mudaram de ideia, e estão descumprindo a promessa. De onde veio essa pressão capitalista sobre o atual governo espanhol?

Para ter-se uma ideia da complexidade, ERC governa Catalunha com um programa independentista com apoio da direita catalã. Na hora de votar a tal reforma, a direita catalã – a de sempre – rachou com ERC e não negou ser a direita que é: votou a favor da reforma (mesmo sendo “radicalmente” contra o governo espanhol). Quando o assunto é capitalismo, capitalismo é. E será.

Fazia anos que o partido mais assumidamente neoliberal (Ciudadanos se chama, mais que Liberal, sem esconder-se ideologicamente), não votava junto com o governo que se diz socialista. Votou. Apoiou. Porque será? Odeia Pedro Sánchez mas votou com ele, já que ele negociou primeiro e prioritariamente mais próximo aos patrões.

A outra aposta é igual de hipócrita: é preciso criar mais empregos urgentemente na Espanha, senão a União Europeia (todas as instituições europeias estão presididas pela direita, pelo Partido Popular Europeu; enquanto o PP não governa nenhum país europeu), não mandará mais dinheiro dos fundos de resgate econômico da sindemia de Covid. Sindemia é Pandemia pra pobre. O vírus é igual pra todos. Mas sofrem, perdem e morrem mais os mais pobres – em qualquer lugar do mundo. Porque será?

Sabe o pior de tudo? Havia maioria para aprovar uma reforma das esquerdas, se o governo espanhol que se diz de esquerda quisesse. Não quis. É fato. Esse é o dado mais importante. Digam o que disserem.

Diálogo é palavra boa e bonita. Foi a mais usada pelo Podemos. Apostar pelo diálogo (pela negociação da contratação laboral), quem não quer? Omitiu de dizer que o diálogo entre desiguais não é diálogo. É imposição mesmo. Marx morreu, a luta de classes não. Pelo contrário, a Espanha mostra que segue viva.

Falando em morte. É significativo que a esquerda brasileira festeje a vitória dessa tal reforma do belo diálogo social. Na mesma semana em que o Brasil, pega fogo (ou pelo menos deveria pegar), pela morte do congolês que foi cobrar o que o seu patrão não queria lhe pagar. O diálogo não deu certo e o jovem “se viu no seu direito” de protestar. Foi assassinado. Não houve diálogo, em resumo.

Lembram do que eu falei sobre a Lei de Imigração espanhola? Jamais deveríamos tratar de reforma trabalhista no Brasil sem falar da particularidade do regime escravocrata moderno que ainda se mantém às custas de quem? Dos imigrantes também, apesar de que estes são proporcionalmente em menor número, num Brasil gigante. No entanto, já não dá pra esconder o debate que atualmente mais pega fogo no Brasil: a exclusão, a precariedade, a morte, no Brasil tem cor. E todos sempre soubemos qual é. A única diferença é que a hipocrisia dos nossos próprios privilégios brancos já não consegue se manter. Não porque a consciência de luta antirracista tenha amplamente se expandido e assistamos uma revolução social negra no nosso país. É que, ao chegar no fundo do poço, a barbárie sobre a vida de qualquer ser humano não branco no Brasil os faz gritar de desespero e indignação: e agora que já perdemos tudo o que tínhamos de perder? Fazer o quê?

Em tempo: o Lula sabe muito bem que o que há de falar-se não é da norma de cada país, mas da regulamentação de uma normativa internacional, da Organização Internacional do Trabalho, da OIT. É disso, da Convenção 151 e 158 da OIT. AQUELA que foi entregue pela própria CUT ao próprio Lula no Planalto, no primeiro ano de governo seu (precisamente no dia 14 de fevereiro). Aquela OIT que ninguém mencionou quando aprovou sua reforma: Temer, e o PP espanhol. O Lula, candidato, sabe que o nome é complicado: ultra atividade, proibida por sentença do STF brasileiro e que a manchete da website da CUT diz que foi recuperada na Espanha. Ele, mais que ninguém, sabe onde o sapato aperta.

Eu sou e serei CUTista (da CUT, no Brasil) mas estampar, HOJE, 4/2/2022, na primeira página da website da Central a manchete, em letras maiúsculas “ACABOU COM BICOS: Congresso da Espanha aprova reforma que garante mais direito aos trabalhadores” é uma ofensa à inteligência de qualquer brasileiro que vive na Espanha e que está sofrendo na pele, literalmente, a verdade que essa manchete – vergonhosa, a meu ver! – esconde.

Assim não vale. Quer debate? Vamos fazer. Podem contar conosco.
Estamos “fora”, mas muito por dentro de tudo o que acontece e ainda vai acontecer no nosso Brasil.

Aquele abraço.


Flávio Carvalho é ex-dirigente sindical da CUT e ex-formador da Escola de Formação da CUT, no Nordeste.

Acesse as mídias de Flávio Carvalho:

Twitter e Instagram: @1flaviocarvalho
Facebook: @quixotemacunaima

Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pelo autor, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.

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