Por Selma Vital para o site da Fibra
Carolina do Norte (EUA), 25 de fevereiro de 2022
Que tal se delirarmos por um tempinho
Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?
(Eduardo Galeano)
Somos quatro irmãos na minha família. Eu sou a irmã mais velha e tenho um irmão oito anos mais jovem, que é o único menino. Quando era pequeno, ele chorava com facilidade e ouvia constantemente do meu pai que “homem não chora”. Eu então me aproximava e dizia baixinho: “Homem chora, sim. Quem não chora é máquina”. Assim, sempre que precisava, ele me procurava com os olhos e se certificava: “Homem chora, né?”. E eu repetia o mantra, “quem não chora é máquina”. Isso acabou virando piada em família porque meu irmão virou um manteiga derretida contumaz: chora assistindo filme, em casamento, em copa do mundo… e até hoje bota a culpa em mim, afinal, fui eu a incentivar e avalizar suas lágrimas masculinas.
Provavelmente ele não precisava de mim pra perceber que meu pai estava errado. Entretanto é sempre bom ter alguém nos lembrando do óbvio, quando somos incapazes de enxergá-lo. De uma forma ou de outra segui tentando ser essa pessoa para amigos e conhecidos, algumas vezes com sucesso. Ainda hoje, até gente que conheço pouco, pede minha opinião como se eu tivesse alguma sabedoria escondida na cartola. Claro que não tenho. Mesmo assim acabei tomando pra mim uma certa responsabilidade para não decepcionar as pessoas que contam com uma palavrinha minha, nem que seja para lembrá-las que não são máquinas, que é bom ter sentimento e que, ao modo de Millôr Fernandes, no fim tudo vai dar certo.
Essa conversa toda é para explicar porque foi uma luta escrever minha coluna deste mês. Meu objetivo com minha coluna no site da Fibra é justamente alimentar um bocadinho nossa utopia. Como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor da epígrafe deste texto: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. E foi inspirada neste pensamento que batizei minha coluninha como Letras Utópicas.
Acontece que mesmo acreditando com todas as minhas forças na bela mensagem de Galeano, o esforço de continuar caminhando parece não ser suficiente nos dias de hoje e precisa ser maior.
Precisa ser maior porque há mais de uma centena de mortos e dezenas de desaparecidos na tragédia anunciada de Petrópolis; porque a PL do veneno foi aprovada, permitindo ainda mais agrotóxicos na comida do brasileiro, produtos em sua maioria proibida no resto do mundo. Precisa ser maior porque inclusive andaram jogando pesticida em cima de terra indígena, com muitos indígenas vivendo (ou tentando viver nela). Precisa ser maior porque um jornal que se diz relevante no cenário nacional abre espaço ao filho do presidente para escrever mentiras e com isso mais uma vez ferir os interesses do país e de seu povo; porque mais armas estão sendo compradas e menos rastreamento se faz dessas armas, escancarando o poder às milícias, que continuam tendo carta branca para aterrorizar a vida de comunidades inteiras, especialmente no Rio de Janeiro. E por fim, nosso esforço precisa ser imenso porque apesar disso tudo (e veja que não cito todas as mazelas do último mês!) o atual presidente ainda tem mais de 30% de intenção de votos nas pesquisas.
Então que seja imensa nossa força para, pelo menos, apoiarmos uns aos outros e buscarmos estratégias de luta coletiva, diluindo o cansaço. Nós já sabíamos que 2022 seria um ano difícil e quem já estava engajado nesta luta desde antes do golpe de 2016 sabe que não teve ano fácil ultimamente e isso tudo pode nos levar ao limite. E se isso acontecer conte comigo pra repetir o mesmo mantra que usei ao acalentar meu irmãozinho chorão: deixa rolar sua humanidade, pode chorar, sim. Mas lembre-se que máquina também não sente alegria e esse é um trunfo nosso!
E pra terminar, nada melhor do que uns versos da canção Capoeira de Arjuna, que o mestre carioca Luiz Antonio Simas acaba de divulgar em suas redes:
“Quem conhece o bem do mundo
Da tristeza não padece
Quem beleza vê no mundo
Da tristeza não carece”
Axé!
Selma Vital é jornalista e professora. Fez parte do Coletivo Aurora, de Aarhus (Dinamarca) e agora é membra independente da Fibra, morando na Carolina do Norte, EUA.
Acompanhe as letras de Selma:
Instagram: @selmadaclaraboia
Site (@svital): Claraboia
Que arte falar do tempo presente de maneira tão inspiradora e poética. Amei.
Obrigada, Heide. Seu apoio certamente me inspira a continuar!