ORTO Coletivo de Comunicação entrevista Flávio Carvalho.

Barcelona, junho de 2022.

“E não adianta vir me dedetizar
pois nem o DDT pode assim me exterminar;
porque cê mata uma
e vem outra em seu lugar” (Raul Seixas).

ORTO: Lula será o novo Presidente do Brasil?

FC: Oxalá! Senão, não há alternativa. Direi melhor: senão, como já está comprovado que não fomos capazes – (assumo, eu também, esta responsabilidade coletiva), nós não fomos capazes de criar alternativa à esquerda de Lula – viveremos o pós-barbárie no Brasil. Porque a barbárie já é o neofascismo bolsonarista. Infelizmente, acabamos voltando ao Lula ou nada.

ORTO: Você não votará em Lula?

FC: Tenho tanta certeza que votarei em Lula quanto tenho certeza que eu mesmo não queria votar novamente nele. Esta é a minha contradição. Mas o que é então o Brasil, senão um país de contradições? E o que é Lula senão o gestor perfeito para todas estas contradições? Foi o grande sociólogo Francisco de Oliveira que já afirmou: Lula é, ele mesmo, um perfeito fruto das maiores contradições do nosso país. Lula nasceu de um ABC Paulista metalúrgico, exatamente quando o capitalismo industrial brasileiro passava por uma de suas tantas crises. É fruto da crise, Lula. Tanto quanto Lula é fruto da fome, num país agroexportador de alimentos, dotado de uma Amazônia, quinto maior país do mundo. E o que mais admiro nele é exatamente essa capacidade de perceber-se, a si mesmo, como um exímio mediador dessas contradições. Foi assim que se forjou sua imensa liderança internacional. Ele se conhece muito bem. Inclusive suas próprias contradições. Li filósofos orientais que diziam que a melhor coisa pra gente conhecer da gente mesmo são as nossas próprias contradições.

ORTO: Quem seria então a alternativa viável ao Lula, se ainda é que pode ser construída?

FC: Deve ser construída agora mesmo, já pros próximos quatro anos. É pra ontem! Aliás, se tem que ser um chato pra na véspera das eleições mais importantes, na hora exata de conseguir votos pra derrotar o fascismo já no primeiro turno, há de haver quem fale da insuficiência, de estar fadado ao fracasso, de qualquer processo eleitoral, que seja eu (e não o Lula, claro). Já me avisarão que não é hora de cuspir no prato que comeremos, mas eu não devo deixar de dizer que o processo eleitoral no Brasil é ruim, injusto, estruturalmente corrupto (leiam Jessé de Souza) e desgraçado. Todo processo eleitoral construído pelas elites para se reelegerem é destinado ao fracasso no mundo inteiro. Fracasso pra quem passa fome; sucesso de quem fatura milhões. Capitalismo puro! No Brasil seria diferente?

Mas eu não vou deixar de responder a sua pergunta. A alternativa viável, na minha opinião, é uma mulher trans, negra e periférica, quanto mais radical – no sentido de ir na raiz das piores desigualdades estruturais – melhor. Não tenho uma pessoa incorporada no meu perfil, que seria a minha candidata ideal, mas até mesmo o personalismo no país dos eternos salvadores da pátria é algo a ser combatido cotidianamente. Algo que a figura de Lula, evidentemente, não ajuda. Lula é a melhor encarnação do antibolsonarismo. Porém, o Brasil não necessita somente disso, de eliminar o bolsonarismo. Necessitamos, sim, uma candidatura que afronte o fascismo, uma aposta radicalmente de afronta à pior encarnação do fascismo. Por isso, o meu ideal de candidata trans, negra, periférica, ao qual eu poderia acrescentar umas quantas subjetividades mais (anarquista libertária, artista com consciência crítica, que represente a soma de todas as lutas contra os falsos moralismos brasileiros e latino-americanos), é pensada exatamente em tudo aquilo que o bolsonarista assumido melhor representa: fundamentalista religioso, oprimido e opressor ao mesmo tempo.

A palavra equilíbrio serve pra quase tudo. Então, a cada pedido de voto a gente tem que equilibrar o não exigir pouco e não perder esse votinho, espantando-o. Como a linha às vezes é muito tênue, o mundo está dividido em dois tipos de pessoa: os que pendem essa balança, esse equilíbrio, pra cá, pro não perder nenhum voto (em resumo: pro Medo); e os que, como eu, agem Sem Medo de Ser Feliz. Alguém se lembra de onde vem esse lema?

ORTO: Como será a campanha eleitoral nestas próximas eleições brasileiras?

FC: Será, dura, feia, sangrenta. E, no fundo, o de sempre: o Medo contra a Esperança. Sabe quando a gente deve se preparar para o pior e então qualquer melhora de expectativa passa a ser um lucro importante? É hora de relembrar aquele debate da esquerda brasileira antes do golpe militar de 1964: os ingênuos, achando que não haveria golpe – que efetivamente houve e jogou o Brasil na desgraça – contra os hiperventilados, os iludidos demais, achando que a resistência (a luta armada mesmo) seria como uma Revolução Cubana em grande escala. Depois, encontraram-se, ambos os bandos, nas masmorras dos porões do exército, sofrendo as mesmas torturas. Deveríamos antecipar esse debate, mais do que nunca atualizando a experiência daquelas bravas lutadoras. A Dilma, por exemplo, fez parte desse intenso debate. O Lula não. Ou nem tanto.

Então, pra concluir esse raciocínio, eu já disse que se for pra assumir o papel de chato, ao lembrar tudo que mais importa (que não são as eleições do Presidente o que mais importa, e isso até o Lula sabe melhor que ninguém) na véspera das eleições são duas coisas, que no Brasil viraram três: como ganhar, porque primeiro há que ganhar; depois como tomar posse do cargo, porque Trump não inaugurou o trumpismo golpista de não aceitar a derrota, nem Bolsonazi será a segunda pessoa do mundo a avisar que fará algo assim (a questão é o próprio fascismo brasileiro saber se tem ou não força para impedir a posse de Lula, e isso não é problema somente deles); e, por último, como governar – e isso, afinal, é o que mais deveria nos importar. Pergunte ao novo Presidente da Colômbia, com somente pouco mais de 30% do novo Congresso Nacional do país.

ORTO: Você já foi político, sim, no Brasil?

FC: Claro que sim. Desde quando eu era adolescente. E, ao mesmo tempo, claro que não. Pois a chave está no que trazes implícito no TEU conceito do que é Política. E não é à toa, para mim, que estudei num Mestrado de Ciência Política, que ainda tenhamos que esclarecer isso, a cada dia. Isso não é pouco. É a base! Do que estamos falando quando estamos falando de Política? Paulo Freire já dizia que algumas perguntas são melhores que muuuuuitas respostas.

Flávio Carvalho em ação.

Pois, bem, pra esclarecer, eu me sinto mais político que muitos políticos brasileiros. E isso não é ser pretensioso nem falso modesto. É expressar um conceito, importante, pra esta nossa conversa.

Assim como eu me sinto mais Lulista que muitos que se dizem Lulista (sendo convicto que falar em autocrítica, quando virou palavrão essa palavra no PT), quando exerço aquilo que o próprio Lula me pediu pessoalmente, cara a cara, – exigiu-nos! – aqui em Barcelona: criticar, sempre construtivamente; empurrar sua candidatura pra esquerda, sempre mais à esquerda – porque segundo ele, a esquerda-centrista já o aperta cada dia para a direita; e jamais o bajular, puxar o saco ou babar seu ovo.

Marx disse que não era Marxista. Lula disse que não é Lulista (embora, no fundo, todos sabemos que se ele não fosse um pouco Lulista não teria chegado aonde chegou). Porque seria eu, Lulista, então?

Eu botei a estrela do PT no peito, me filiei da cabeça aos pés, justamente quando Lula perdeu a primeira eleição pra Collor. Subi nesse trem quando ele estava exatamente perdendo. E tinha gente pulando fora. Estou comemorando trinta anos disso, comigo mesmo. E não exagero quando eu digo que eu trago, na minha trajetória de migrar pra Barcelona, capital mundial do Anarquismo Libertário, de temperar, a cada dia, como aquela mosca na sopa de Raul Seixas, esse imenso caldão de tudo que é a força do PT: diversidade. Eu reivindico a história dos anarquistas libertários brasileiros que também fizeram parte daquele caldeirão de diversidade que sempre foi o PT. Então, eu não me importo de ser a mosca na sopa do PT. Isso é o que me faz mais petista do que muitos petistas que (eu sei que) não aceitam a minha crítica construtiva. Eu não me preocupo com estes. Eles que se preocupem comigo. Eu quero é povão.

Porque, no fundo, o dualismo presente no debate político brasileiro é o de sempre, no mundo. Às vezes não é tanto de pra onde vai como O Ritmo de como se faz a coisa. O debate nunca feito, muito menos na esquerda – onde isso sempre complica – é a questão dos Privilégios. Remédio amargo seria o que nos curaria. E não ficar botando soprinho… O debate bom é aquele militante de esquerda, patricinho (cada qual com a sua legitimidade, até mesmo a esquerdinha caviar) olhando na cara da mãe preta, favelada, cheia de filhos abandonados pelos pais e pedir paciência pra ela; que a oportunidade de tirar Bolsonazi é mais importante do que tudo. Que depois a gente fala “das coisas essas” que ela tem direito. Quem ainda tem coragem de exigir isso pra essa mulher, no Brasil, depois de TUDO?

Por isso, aviso aos navegantes, quem já passou por um processo de expulsão do PT e sobreviveu, como eu, sabe o que é gritar para que o PT seja menos careta, assuma o debate aberto sobre a questão das drogas, da sexualidade, do aborto, de não passar pano pro oligopólio brasileiro da comunicação, da arte, e – principalmente! – os temas que eram secundários para a esquerda brasileira e que, por isso mesmo, talvez estejamos na merda que hoje estamos: o machismo, o racismo, a homofobia e a transfobia, os temas que não priorizamos: reforma agrária DE VERDADE, taxação das grandes fortunas, a questão do salário dos próprios políticos (principalmente os hipócritas de esquerda!), reparação histórica na questão da terra indígena e quilombola, etc. Tudo aquilo que muitos militantes Lulistas não criticarão às vésperas de ganhar uma eleição (já de olho nos cargos públicos que podem pingar pra eles mesmos). Eu, sim, como moro no exterior e não tenho perspectiva de retornar hoje mesmo ao Brasil, digo o que penso, com coerência. Deixa que a gente grita, aqui, na militância internacional. Pode deixar que eu sou consciente do privilégio de morar fora, de não ter fascista me esperando na esquina pra me assassinar. Embora aqui também tenha o seu fascismo, claro que sim. Aliás… outro tema bem pendente na agenda política brasileira, isso da militância internacional, da cidadania universal, dos nossos direitos políticos migrantes. Mas isso é pra outra conversa.

Aquele abraço.


Colaborador da FIBRA, Flávio Carvalho é escritor, poeta, antropólogo, ex-consultor da UNESCO, da FAO e da OIM. Filiado e ex-assessor parlamentar do PT, trabalhou como consultor do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério da Cultura no Governo Lula, além de atuar como Coordenador de Formação e Planejamento do Orçamento Participativo de Olinda. Foi educador da CUT, CONTAG e MST, bem como Coordenador de Cultura do Fórum Social Nordestino. Fundador do Coletivo Brasil Catalunha. Foi vice-Presidente do Conselho de Representante dos Brasileiros no Exterior.

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