As sinas e sortes dos refugiados na Holanda: vergonha define!

Por Ana Isa v Dijk, para o site da Fibra.

Houten, 1 de agosto de 2022.

“Até nas flores existe a diferença de sorte.
Umas enfeitam a vida, e outras enfeitam a morte.”
(provérbio português)

Escrevo motivada pela indignação diante da crise gravíssima dos refugiados na Holanda. Esta manhã recebi por e-mail um comunicado da organização Vluchtelingenwerk Nederland, de que estarão ajuizando uma ação contra o Estado Holandês por conta das condições de acolhimento insalubres e desumanas, “abaixo do limiar humanitário (De omstandigheden in de opvang zakken door de humanitaire ondergrens.)”, dos refugiados recebidos pelo Estado.

Como brasileira e imigrante considero inaceitável, imoral mesmo!, a forma como este país rico, com alto nível de escolaridade e índice de desenvolvimento humano IDH igual a 0,933 (entre os 10 melhores do mundo), possa normalizar como business as usual a violência social, que Vluchtelingenwerk está chamando de Onderscheid nationaliteit in opvang (Recepção Diferenciada por Nacionalidade). Violência que fere também o Artigo I da Constituição Holandesa – que trata dos direitos fundamentais, dentre estes a Igualdade de tratamento e não discriminação. Vergonha!

A complexidade da crise se aprofunda na medida em que aumentam os danos causados a pessoas já fragilizadas, em fuga pela sobrevivência. O que assistimos é pura crueldade, e o que se espera, no mínimo, é que a sociedade se importe, ora bolas! A TV mostra, dia após dia, as imagens de seres humanos jogados pra cá e pra lá, dormindo ao relento, no frio, ora sentados em cadeiras de praia, ora em mantas ou sacos de dormir estendidos num gramado. Pessoas sendo tratadas como seres inferiores, os quais, no limiar de suas forças são despidos de suas humanidades e forçados à mendicância de justiça e direitos, quiçá de alguma compaixão! Aonde foi que o nosso sangue perdeu a temperatura e o coração parou de bater? Alguém sentindo vergonha aí, gente?

Imagem à esquerda aqui | Imagem à direita aqui

A crise dos refugiados, que já era um desafio, agravou-se com a guerra na Ucrânia, que vem produzindo uma multidão de errantes, notadamente crianças, idosos, mulheres e imigrantes residentes naquele país. O agravante fica por conta da diferença de tratamento entre “desvalidos” – a generosidade imediata com os ucranianos contrasta com a recorrente desculpa “a Holanda está lotada!” Com a iminente explosão do modelo atual de admissão de asilados, a crise local de Ter Apel (local do centro de triagem/abrigo para 2000 pessoas) passou a ser nacional. Rutte buscava, ele mesmo, esquivar-se da pressão: de um lado os prefeitos chamados a custear a multiplicação de espaço e, de outro, a sociedade civil denunciando ideias obscenas, como alojar refugiados em navios, trazendo à tona o que realmente está em jogo: prefeitos só receberão ucranianos! O fascismo no cio não conhece cometimento! Aí eu lembro do provérbio português sobre diferenças de “sorte”, pois até para fugir do inferno, nesta Europa hoje, está bem claro o que aguarda olhos negros ou azuis!

O que assistimos, na prática é a combinação de alguns dos frutos nefastos de mais de uma década de governos neo-liberais. O fim do bem estar social anunciado pelo premier Mark Rutte há alguns anos, traduz-se em um país cada dia mais individualista e menos afeito a aceitar a diversidade, a imigração, o levante das vozes anticoloniais contra racismos de toda ordem, a lista é longa … Lida-se hoje com frequência com um ranço explícito ao diferente, ao outsider ou allochtone (o estrangeiro), negando às novas gerações que avancem na compreensão e aceitação das responsabilidades sociais coletivas, para que não se permitam (pelo menos não sem luta!), retrocessos dolorosos como este da crise dos refugiados de muitas guerras.

A xenofobia e o racismo expõem-se com naturalidade e estão impressos e expressos no descaso compartilhado entre governo e (parte da)sociedade, integrando a seleção por origem e as análises étnicas, empregadas há anos na condução de políticas públicas estratégicas deste país, como o fisco, os serviços de inteligência, segurança, polícia etc… Vergonha de novo! Neste rastro, a extrema direita revigora-se, deleita-se e educa a sociedade a odiar.

Neste momento minha indignação vai dando espaço à tristeza e a algum descrédito na humanidade…. Sinto um misto de descaso combinado com fraternidade seletiva, compaixão meia-boca, e solidariedade “étnica, ou de origem”, com que se acolhe uns e se segrega outros.

Rutte levará o Estado a ser acionado judicialmente. Finalmente há coragem para agir com seriedade e pautar o enfrentamento necessário. O banho-maria social, com que governa o gabinete Rutte IV – grande avalista do sucesso estrondoso da SHELL e seus lucros bilionários apesar da crise!, – constitui-se, ao final e ao cabo, em uma máquina destruidora de futuros, excludente e implacável com os fragilizados, ou economicamente indesejáveis. Governo que pendula entre as contradições do capitalismo a que serve, que lhe tensiona a governança, e morde aqui e assopra ali o seu projeto de poder!

Faço votos que a iniciativa do Vluchtelingenwerk dê frutos jurídicos robustos, e obrigue os governos locais e nacional a lidarem com as pessoas com o respeito e responsabilidade prevista pelos acordos humanitários internacionais, dos quais a Holanda é signatária. Prefiro apostar que as cortes holandesas não desafinarão dos ditames que definem os direitos humanos, elegantemente usados como vitrine e lastro de honra das togas. Do contrário serão reduzidos a meros adornos de vaidades.


Ana Isa v Dijk é membra da Fibra e do Coletivo Amsterdam pela Democracia, na Holanda.

Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pela autora, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.

 

7 thoughts on “As sinas e sortes dos refugiados na Holanda: vergonha define!

  1. Muito obrigada, Ana pelas suas excelentes colocações. Vemos que muito pouco se ouve na midia sobre o destino dos asilados. Aqui na Alemanha muitos não conseguem o visto permanente por criterios que eu mesmo não entendo, vivem com o medo constante de “serem mandados de volta”. Situação inadmissivel para um país chamado de 1. Mundo e que fornece armas para guerra. Abraços conterranea!

    1. Que bom que gostou da reflexão Namir e ao completar com o que ocorre na Alemanha, ajuda os leitores a entender que estes relatos – meu e seu, apontam somente a pontinha do iceberg de injustiças e xenofobia que se alastra pela Europa. Ainda hoje um homem nigeriano foi espancado à morte na Itália. É ódio fascista, sónÃo vê quem não quer! Abraços 🙂

  2. Mistura de sentimentos. Grato por ser informado. Triste e revoltado pelo que está ocorrendo. Texto gostoso de ler. Boa denúncia. Vamos compartilhar. Aquele abraço. Flávio.

    1. Caro amigo seus elogios são para mim combustível para perseverar! A luta não espera que a gente se acomode, mas que façamos as denúncias do que se nos passa diante dos olhos! Obrigada pela leitura! 🙂

  3. Eu e minha esposa passamos seis meses em Haia, bem no começo da pandemia. Sabíamos que ficamos numa bolha e não sofremos e nem tivemos contatos com o que você nos explica. De volta ao Brasil, nós dois retomamos nossas lutas dentro do Movimento Nacional de Direitos Humanos em MG. Aqui não só lutamos para que nossas irmãs e irmãos consigam sobreviver neste Brasil racista, quando lutamos para acolher nossos irmãos haitianos, venezuelanos entre outros. Não está fácil. Lee seu relato, bem como o do que acontece também na Alemanha, nós força a continuar firmes na luta. Vamos levar seu texto para que outros do Movimento assim como nós, nós inteirar-nos que a luta é global, com ações locais. Um grande e forte abraço de um irmão de luta.

    1. Obrigada por suas palavras Richard, acompanhe este site da FIBRA que reune coletivos e brasileiros progressistas pelo mundo todo. Daqui lutamos para repercutir a luta que vocês empreendem no Brasil. Força e sucesso aí a luta por justiça e direitos é universal. Parabéns pelo trabalho aí em MG. Um abraço. AI

  4. Boa noite, à todes. Primeiramente, parabéns pelo belo texto Ana Isa!
    A vida de pessoas refugiadas não ricas, é muito dura! Já trabalhei nessa área. Eu acrescentaria que não há ” crise de refugiados”, mas Falta de Política governamental séria para, entre outros , acolher decentemente todas as pessoas refugiadas ou que necessitam de asilo. Estejam estas com visto de estadia ou com processo em andamento. Chamar o acolhimento aos refugiados na Holanda de desumano , será pouco. Porque destrói vidas. E sou testemunha. O filho de uma iraniana que conheci, perdeu os rins ( na época com 10 aninhos) nos 5 anos que viveu num ” centro de acolhimento coletivo” .
    Esse desgoverno racista , classista e ultra neoliberal holandês , retirou 25 milhões de euros extra, para atender aos refugiados da Ucrânia. Em todo os governos do partido neoliberal VVD , jamais se viu isso! Refugiados do Sudão, Iraque, Afganistao, Líbia, Irá, ..jamais tiveram tal tratamento!
    A saber, há quase trinta anos que aqui vivo , nunca presenciei na sociedade Holandesa, o envolvimento de diversas ONGS em suas diversas atividades, fazerem campanha para acolher ou ajudar com trabalho voluntário pra se acolher os / as Ucranianas!
    Ficou bem claro: o EUROCENTRISMO E O RACISMO , é mais que INSTITUCIONAL !!
    Abraços,
    A. Cotta

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