Dani Alves, Kung-Fu Panda e a tia de Rosalía

De Flávio Carvalho, para o site da FIBRA.
Sociólogo e escritor pernambucano que reside desde 2005 na Catalunha.
@1flaviocarvalho, @quixotemacunaima.

Barcelona, 03 de agosto de 2023.

Se eu largar o freio, você não vai me ver mais.
Se eu largar o freio, vai ver do que sou capaz.
Se eu largar o freio, vai dizer que sou ruim.
Se eu largar o freio, vai dar mais valor pra mim.
Paracundê, paracundê, paracundê, paracundê, paracundê ê ô” (Péricles, pagodista brasileiro).

Estive com Dani Alves pela primeira vez numa das suas famosas festas de aniversário de Barcelona. Aquela foi nas Ramblas, o coração turístico da capital da Catalunha. Habilitou-se um antigo teatro para que o seu fiel Chef de Cozinha nos apresentasse experimentos gastronômicos sofisticados. Um rabo de touro ao vinho do Porto, realmente inesquecível.

Eu prestava serviços de língua portuguesa, aulas e tradução, numa empresa perto da minha casa, contratado por um representante da FIFA, dono daquela empresa onde eu atuava. Dani Alves não o tratou bem. De fato, o destratou diante de várias pessoas. Eu o admirava, ao baiano, no Barça, onde foi o maior assistente de gols do inigualável Messi. Mas também por alguma atitude sua, antirracista, fora do gramado. Surpreendi-me com a minha própria decepção e a arrogância do jogador. Superioridade moral mal calculada? Bola pra frente.

– “Deve estar num mal momento, talvez ‘inferno astral'”, comentou na mesa, ao lado da sua esposa, o jogador Adriano, brasileiro, também do Barça e companheiro de Dani.

Uma grande amiga, também baiana, coincidiu em alertar-me com o mesmo comentário proferido por outro imenso jogador, campeão do mundo, com quem compartíamos mesa: – “Ele, Dani, é assim”. Nunca mais esqueci aquele comentário a dois. Não lembro se a frase correta foi: “Ele é assim, mesmo”. Essa mera palavra ao final da frase hoje faz muito mais significado pra mim. Pareciam estar me avisando ou apresentando alguém que eles talvez já conhecessem.

Uma das questões mais profundas nos piores machistas é sentir-se dotado de uma autoridade moral, julgando-se (melhor do que realmente pode ser) e julgando as demais pessoas, ao mesmo tempo. Pode ser juiz, algoz e vitimizar-se, em questão de segundos. 

Dani Alvez diz-se decepcionado com os trabalhadores da boate Sutton, onde a violência sexual aconteceu. Diz que todos lhe tratavam com muita amabilidade, que jamais imaginava que poderiam testemunhar contra ele, e que o deixaram ir embora sem noção do que estava acontecendo naquela noite. Até pegou um avião pro México… Ingênuo?

Hoje saiu a decisão judicial que pede para o jogador em prisão preventiva, Dani Alves, uma sentença severa pela agressão sexual que cometeu. Porque tudo indica que, sim, cometeu.

“Outros cumprem ordens; eu rompo o sistema… O que faz poderoso ao ser humano é o conhecimento de suas virtudes e defeitos… Os filmes infantis ensinam muito ao que presta atenção. Kung Fu Panda diz que o futuro é uma incógnita e o presente é o mais formoso que há. Por isso se chama presente. Porque há que abrir-lhe todos os dias”, dizia Dani ao El País, durante a Copa, menos de um ano atrás.

“Somente ela e eu sabemos o que ocorreu naquela madrugada dentro do banheiro… Eu a perdoo” sentenciou, recentemente. Numa entrevista exclusiva que condenou a jornalista entrevistadora, a catalã, Mayka Navarro, como “Passadora de Pano”, em diversos meios de comunicação da Espanha. Destacou-se em todo o país a expressão Amável, atribuída ao jogador pela jornalista, naquela entrevista exclusiva no jornal La Vanguardia – a primeira que Dani concedia depois de preso, “con los ojos que abre y cierra con intención”.

O grande desafio nas políticas públicas contra a violência machista e o feminicídio é convencer boa parte da sociedade de que não é preciso ser anormal ou fora do normal, para ser um assassino de mulheres. A maioria dos casos ocorre dentro de casa, dentro dos relacionamentos amorosos, onde menos se espera brutalidade. Por sua vez, o espectro da violência machista possui uma variedade de caras e expressões que vinculam, de forma escalada, uma cantada, uma punhalada e um ácido jogado na cara. Uma amostra recente de 64% dos jovens do sexo masculino entrevistados nas escolas públicas da Catalunha dizia-se preocupados porque se sentem vítimas, eles. E elas, o que sentem e o que são? O problema, segundo estes jovens estudantes, é o feminismo. E não a praga mundial patriarcal, que vem mais que dobrando o número de jovens mortas na Espanha, por exemplo, ano após ano.

Por isso, quando Lula diz que Bolsonaro é um “monstro”, contribui, mesmo sem querer, para esta confusão mental que faz com que boa parte da população pense que os monstros são os outros. E não que está aqui, dentro de nós (todos!) prestes a agarrar-se na primeira desculpa esfarrapada e hipócrita para cometer qualquer tipo de violência sobre um corpo que ele pensa, no fundo, que lhe pertence.

Claro que Bolsonaro ganhou uma eleição por assumir-se como um monstro, criando identificação com tantos outros que não se assumem. Claro que Lula, ao contrário, representa o oposto. Mas eu, Lula, você que me lê, que parcela de responsabilidade “normal” chegaremos algum dia a assumir, como pessoas normais que somos – e aparentamos ser?

Concluo com uma historinha.

Muito antes de conhecer Dani Alves, visitei diversas vezes brasileiros e brasileiras presos naquele mesmo presídio onde ele se encontra. Numa destas visitas, fui apresentado, por casualidade – e por curiosidade, por uma funcionária da prisão, parente da cantora Rosalía, da mesma cidade do presídio – a uma dupla de brasileiros que haviam sido namorados num cruzeiro de luxo, antes de serem presos por porte de drogas. De alguma forma, ele a havia incriminado, segundo me relatou a própria mãe do brasileiro preso.

Mulheres e homens ali convivem em módulos separados. E a funcionária, parente da famosa artista, dizia que ela, a brasileira, estava enfocada na biblioteca, onde passava horas e pedia livros, romances, sempre De Amor. E ele? Perguntei-lhe, ao que me respondeu: ele só tem uma obsessão que repete cada dia: sonha em casar-se com ela. Diz que a ama.

E ela, o que sentia sobre isso?

A frase final, a decisiva resposta que escutei, me voltou, nestes dias.

“Aqui na prisão de Brians, escutamos muito dizer-se que ele parece ser uma pessoa bastante amável. Porém ela, por sua vez, diz que é um monstro, que tem muito medo e que seu pesadelo de cada noite é saber que ele dorme detrás da parede ao lado”.

Flávio Carvalho


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Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pelo autor, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra

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