Amsterdam, 25 de maio de 2025.
Por Luíza Monteiro, para o site da Fibra
@luiza.monteiro
Uma linha vermelha costurou nas ruas de Haia um tapete de solidariedade ao povo palestino. E não venham dizer que foi antissemitismo porque não havia o mais leve sentimento de desprezo, preconceito ou ódio, havia, sim, a emoção de não aceitar a morte de parte da nossa espécie. O manto humano a nos cobrir, protegendo-nos da barbárie.

E ainda, se não bastasse, muitas pessoas de etnia judaica se alinharam para juntos protestarem pelo sangue tingindo os pedaços de escombros, pelo fim das bombas a perfurar o solo de Gaza e pela desumanidade realizada em seus nomes.
Foram cerca de 1.200.000 pessoas, muito além da população da cidade holandesa, a maioria com vestes avermelhadas para alertar que neste momento estava se passando um limite, uma linha vermelha em que ela – a própria humanidade – já não poderia mais se reconhecer após atravessar esta rubra fronteira.
Gritos, faixas, cartazes reivindicando a liberdade do povo Palestino, o fim das hostilidades e a entrega de suprimentos básicos para que homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, sobrevivam ao cerco militar que definiu como modelo ter uma etnia como inimiga, não importa quem esteja colocado ao lado, sejam pacifistas, médicos, jornalistas ou até reféns israelitas.
O que mais dói, diz meu marido, é que o autor deste massacre é quem sofreu o mesmo na sua história. Como pode acontecer este desfile de crueldades já vistas?
Meu marido é judeu, perdeu avós e tios no Holocausto, levados de suas casas em Amsterdam para o campo de concentração de Westerbork (Drenthe) e, de lá, transportados para ser assassinados em campos de extermínio na Alemanha. Seus nomes estão gravados em lápides nestes locais. Os familiares que sobreviveram, emigraram como seus pais fazendo seu ponto no Rio de Janeiro, ou se esconderam no forro da sociedade. Na clandestinidade, disputavam uma batata por toda uma semana ou comiam bulbos de tulipas roubados dos rendados jardins da cidade. Dormiam vestidos até com sapatos, pois podiam ter que fugir sem perder um segundo sequer. É, foi difícil… Participaram da Resistência, pois não aceitaram o modelo que lhes foi imposto.
O grande crime que cometeram: ser judeus.
Se foi crime pertencer a uma etnia, como pode nos dias de hoje o mesmo se reproduzir? Pior! Sendo o algoz aquele que conheceu a dor e a perseguição? Uma parcela do povo judeu, que vestiu a camisa do sionismo!
Um ciclo de dor ressurge das cicatrizes tão recentemente fechadas. Desta vez, ao revés, a antiga vítima oprime aquele que é mais vulnerável. Será que há uma semeadura de ódio racial que se reproduz silenciosamente? O que uma criança tornada órfã sentirá em relação a quem matou seus pais? Que futuro existirá com tanta violência consumada? Será um ciclo inexorável a se reproduzir? Ou poderá existir um fim? Um corte nisto tudo?
Um país – África do Sul – cuja minoria da população subjugou a maioria não branca tentou retalhar este processo. Criou tribunais de reconhecimento e reconciliação como instrumentos jurídicos e psicológicos para reparar feridas sociais, inaugurando algo novo e promissor. Torna-se compreensível que, justamente, a África do Sul tenha denunciado e obtido a culpabilização de Netanyahu e seu regime no Tribunal Penal Internacional também em Haia. O homem que convidou os países da ONU a fazer da Faixa de Gaza uma benção aos lucros do gás natural ou aos de um resort com casinos, junto com Trump, é réu condenado, com limitada circulação pelo mundo. Não resolve. Mas, atinge aquele na sua liberdade e é o que dispomos de meios. Até o momento.
A Linha Vermelha de Haia (de Rode Lijn, uit Den Haag) e de outras tantas partes do mundo acordou a intencional letargia europeia. Esperemos que o bolso – parte mais sensível do corpo de alguns humanos – se rompa e remodele o que observamos. Que linhas vermelhas que nos costuram como humanos se mantenham como proteção aos que sofrem e aos que se rebelam e, saibam todos, que não “passaremos pano” a algozes.
Luiza Monteiro
Luiza Monteiro é integrante do Coletivo Amsterdam pela Democracia.
Nota: Os textos, citações e opiniões deste texto podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.