Por Ana Isa v Dijk
Esta leitura convida a algumas reflexões sobre a vida dos imigrantes, ideias distorcidas sobre a corrupção alheia e como nos amparamos em premissas históricas – trabalhadas com êxito, para que se ache que aos “desenvolvidos” lhes
cabem ensinar o caminho da verdade e aos “subdesenvolvidos” aquietar-se em seus lugares de sobrevivência!
Em tempos de terra arrasada pelo projeto Bolsonaro, cepa brasileira do Covid19 e imprensa internacional surfando no escândalo da Vaza Jato, vira e mexe o Brasil volta a frequentar as manchetes da mídia internacional como República de bananas. Cada análise dos periódicos europeus sobre o inferno brazuca vira combustível de alta octanagem pros vira-latas conterrâneos de plantão e para fascistas de todas as bandeiras! “- Ahhh o Brasil!…. Tem jeito não!”
(pensam à minha volta).
Preciso destacar aos que olham pra cá a partir do sufoco da vida no Brasil e eventuais desavisados de fora da bolha progressista, que nem só de maravilhas e oportunidades se vive neste sedutor e quase encantado primeiro mundo. Enquanto a Europa se diverte com o nível hard de trapalhadas medievais dos discípulos de “Jesus da Goiabeira” ou inconsequências diplomáticas de navegadores da borda do mundo, aqui se peca e muito, quando se trata de suposta corrupção e mal feitos “dos outros”, o que boa parte da sociedade holandesa normalizou despudoradamente como mal inerente de outras culturas, herança maldita dos imigrantes.
Quantas vezes já ouvimos aquela velhinha fofa de olhos azuis nos lembrar: “-Se não aceitam nossas regras e valores que voltem pra sua terra!” Fofa, mas fascismo puro! Quem não conhece essa dança nunca saiu do país! O imigrante do século XXI é a geni tolerada, conveniente ao capitalismo neoliberal destruidor de direitos e alvo predileto do fascismo destruidor de liberdades.
Há quase 20 anos vivendo na Holanda nunca admiti que alguém viesse apontar corrupção como DNA de brasileiro. Acostumados a mirar no cisco alheio, os holandeses vivem hoje a saia justa do bode na sala do tal DNA das corrupções e maldades, ao ter que lidar publicamente com o maior escândalo desta nação desde que o príncipe Berhard aceitou propina da Lockheed Corporation para interferir na compra de caças militares (1976). A história mostra que mau-caratismo não se define por nacionalidade, mas se der pra enfiar isso nos algoritmos dos sistemas de investigação de estrangeiros tá valendo, né gente? Aí eu penso naquela bunda na janela expondo a estrutura racista, xenófoba e ladina escondida com elegância nas lapelas de grife e poder do mundo civilizado.
Em meados de 2009, enquanto no Brasil se vivia a era Lula com todos os históricos indicadores da vergonha social sendo atacados de frente pelas políticas públicas petistas (confesso ter exercitado alguma arrogância de orgulho, pra compensar o período FHC onde vergonha alheia chegava pela TV dia sim e outro também), a Holanda adentrava o terreno pantanoso daquilo que hoje marca um vergonhoso escândalo envolvendo o mais alto escalão do governo, parlamento, fisco e a mais alta corte administrativa do país.

Conhecido aqui na Holanda como De Toeslagenaffaire Belastingdienst (o caso das creches e o escândalo do fisco), o caso não deixa nada a desejar à marca registrada da Lava Jato e ao método Moro de manipulação da justiça, abuso de poder e perseguições implacáveis a cidadãos específicos, sob a bandeira de combate à corrupção! No caso holandês, uma investigação parlamentar pluripartidária concluiu ao final de 2020 que nos danos causados injustificadamente a milhares de cidadãos holandeses houve participação, direta e indireta, do governo do primeiro ministro Mark Rutte, dos ministérios do Bem Estar Social e Trabalho, e de Finanças (Socialezaken en Werk en Financie), da autoridade tributária (Belastingdienst), do sistema judiciário (Raad van Staat) e do Parlamento (Tweede Kamer). Gente, isso é muita coisa!!!
O escândalo, desvendado aos poucos em sua complexidade pela persistência de jornalistas e alguns parlamentares, trouxe à tona uma estória assustadora, repleta de medidas concebidas à luz de estereótipos xenófobos e racistas, baseados fundamentalmente em perfis étnicos (proibido pela constituição holandesa) mirando pais/responsáveis possuidores de dupla nacionalidade, isto é, famílias de imigrantes, taxados sumariamente de fraudadores em todas as instâncias governamentais, sem direito à defesa e com repercussão em cascata ante empregadores, instituições financeiras de crédito etc etc etc ….
O que me choca é a normalização e aceitação de boa parte da sociedade que justifica a aplicação draconiana de uma série de leis e regulamentos mal formulados e mal controlados, como justo no combate às fraudes em subsídios sociais. O mesmo caminho que justificou a ascensão de figuras como Mussolini, Hitler, Berlusconi e Bolsonaro ao poder e cujos danos individuais de cada vítima jamais seremos capazes de computar ao certo. A guerra à corrupção não pode justificar o cancelamento de seres humanos! Não pode! Enquanto o combate devido à fraude e corrupção estiver junto e misturado com o processo viciado de convencimento político de massas, os oportunistas e mercadores da ignorância vão agradecer sempre! A história do Brasil e do mundo está farta de exemplos desastrosos, mas encantar-se com a serpente da vez continua arrebatando corações e mentes de quem não consegue (ou quer) aprender a entender de política. Qual a parte difícil de entender que criminalizar a política retroalimenta adeternum essa ciranda de desumanidades?
No caso do Brasil, o juiz Moro pavimentou o chão para Bolsonaro exercitar suas psicopatias através da necropolítica do grupo que comanda o país – da COVID19 às boiadas de Guedes e Salles, o Brasil se desmantela e as mortes são da ordem de milhares por dia! No caso Holandês, o escândalo das creches começou pelo ímpeto de desvendar fraudes de
imigrantes, gerou dívidas indevidas de milhares de euros, devastou famílias, causou demissões, perda de casa própria, jogou na pobreza mais de 80 mil crianças holandesas por mais de 10 anos! Dá frio na espinha só de pensar nisso….
Honro desta forma o caminho de luta que tem sido travado pelas vítimas, na busca de reconhecimento e justiça. Às mulheres e mães (imigrantes) em particular, alvo majoritário dessa violência do Estado holandês, emprestarei minha parcela de ativismo brasileiro em solidariedade às suas dores e lutas no dia 8 de março vindouro e convido a todxs que também o façam, com o desejo de que essas crianças se recuperem dos traumas do mundo que teimamos em denunciar e que virem sementes de esperança e justiça no mundo que teimamos em construir!

Ana Isa v Dijk – é arquiteta e urbanista, dona de casa e ativista na Holanda, membra
fundadora do Coletivo Amsterdam pela Democracia no Brasil, e da Frente Internacional
Brasileira contra o Golpe no Brasil (FIBRA).
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