Meritocracia, identitarismo e frustração

 Por Ermeson Vieira

Bruxelas 2021

Recentemente fui convidado a participar de um grupo. Como todo mundo sabe, tudo agora consiste em participar também de um grupo de WhatsApp. Pois bem, entrei ao grupo e como não fui o único alguém propôs que fizéssemos uma apresentação. Eu fui o primeiro a me apresentar. Logo depois alguém pediu para nos identificarmos com “o seguimento identitário pessoal (tipo: sou indígena, quilombola, gay, etc …), ou a entidade da sociedade civil organizada da qual cada um fizesse parte, já que “a meritocracia” supostamente “além de contribuir para segregar pessoas, fragiliza (ria) causas”. 

Esse comentário me deixou muito incomodado e até doído pois o vi como uma indireta. Deu-me a impressão que essa pessoa não compreende nem a questão da meritocracia, nem a questão do identitarismo e ao fazer tal comentário comete grande injustiça e desrespeita a história e o esforço de outras pessoas. 

Quantas vezes nos emocionamos com os casos de alunos pobres que através das iniciativas dos governos de Dilma e Lula conseguiram entrar numa universidade pública e se formar? Por que então não achamos que isso é meritocracia? Ou melhor, por que só achamos que é meritocracia quando uma pessoa como eu, branco de classe média se forma? Por que as pessoas não perguntam antes o que cada um passou para conseguir o que conseguiu lograr? Por que se toma automaticamente como negativo os estudos superiores e ainda mais no estrangeiro? 

Outro episódio também me fez refletir muito sobre a chamada meritocracia e sobre o que as pessoas realmente estão buscando. Este ano saiu uma oferta de trabalho na minha área (comunicação e vídeo), em Bruxelas, de um movimento bem conhecido no Brasil, o qual inclusive que recebeu incentivo do Ministério da Cultura no Governo de Lula. A vaga tinha absolutamente tudo a ver com meu perfil. Parecia que havia sido feita para mim. Precisava ter de experiência em mídias sociais, escrever, falar em público, editar vídeos etc… Para resumir, eles não me convidaram sequer para uma entrevista. A vaga ficou para uma pessoa sem experiência em muitos desses campos. Quando fiquei sabendo da decisão, me perguntei o que eles realmente estavam procurando e cheguei à conclusão que eles supostamente só queriam uma pessoa com laços com a comunidade brasileira na Bélgica. Que valor se deu ao saber, nessa história? Que importância se deu aos anos e à dedicação ao campo de estudoexplorado pela pessoa? O que há da experiência da pessoa? Não há nada. 

Em outro caso estive trabalhando como voluntário para um festival de cinema em Bruxelas, dentro da comunicação. Fui assistir à primeira sessão de um filme e, para minha surpresa, descobri que, para o debate que aconteceu depois da sessão, foi convidado uma pessoa sem nenhum conhecimento teórico ou prático no ramo do cinema ou mesmo político. A pessoa em questão era um blogueiro, que dizia que seu site tinha a visita de 20 mil pessoas por mês. E aí foi que eu entendi o que realmente importava, e importa, para uma parte da esquerda hoje em dia: a chance de atrair audiência. 

Si eu fosse um gay, ou uma mulher negra e pobre, que tivesse conseguido estudar fora, isso não seria tomado como meritocracia. Isso seria considerada “uma vitória contra o sistema”. Seria eu então um grande herói e heróis chamam atenção. Heróis e mártires não se regem só por méritos mas também pela mitificação. 

Pois bem, para os que gostam de heróis, mártires e mitos, e acham mais importante a identificação de cada um, do que aquilo que ela pode acrescentar à luta através dos conhecimentos sistematizados e acumulados através da pesquisa e da experimentação acadêmica, eu quero contar em grandes traços como cheguei a possuir meus três diplomas e ser considerado classe média. 

Sou o filho mais novo de uma família de oito filhos. Nasci em Quixeramobim, no sertão central do Ceará. Meu pai teve que mentir sua própria data de nascimento para entrar na REFESA, onde trabalhou por mais de dez anos como foguista passando longuíssimas horas colocando carvão na fornalha do trem até se tornar maquinista. À minha mãe não lhe restou outra chance a não ser tornar-se dona de casa e cuidadora de oito crianças. 

Passei parte da minha infância em Quixeramobim. Meu primeiro contato com a educação foi marcado pela palmatória de uma senhora negra que morava na minha rua. Meus pais incentivavam a mulher a me bater com aquilo que parecia uma colher de pau, mas sem a concavidade típica desse instrumento que serve a uma tão nobre e necessária atividade da vida humana: comer! Aquele instrumento eu nunca esqueci. 

Em Fortaleza, anos depois, minha educação foi um pouco menos traumática, mas não sem traumas. Já na alfabetização fui reprovado por não saber a letra H na prova final, coisa que hoje em dia, imagino que seja ilegal. Na oitava série tive que suportar os socos e os pontapés de alguns companheiros de sala de aula por ser gay. Porém o que mais doeu não foram os socos, mas a impossibilidade de me queixar do ocorrido a alguém, principalmente a meus pais que mais uma vez eram contra a minha identidade. Tive que chegar a casa e fingir que nada tinha acontecido. Também preciso dizer, que durante toda minha adolescência tive que reprimir meu desejo e afetividade, já que os insultos, que eram tão comuns, poderiam se transformar em agressões como essa que os narrei. 

O segundo grau foi mais calmo, mas de todas as maneiras não foi menos fácil. Nessa época, eu encontrei o movimento estudantil e me dediquei a fazer oposição ao grêmio da escola. Certa vez, fizemos um jogral durante um fim de semana. Na segunda-feira ele foi rasgado pelo diretor da escola na frente de todos os alunos. As aulas de filosofia eram cheias de discussões com o professor, que queria que decorássemos os nomes e as histórias dos filósofos para passar de ano, mas não incentivava nenhum senso crítico nos alunos. Minha “salvação” filosófica veio do CAEP (Centro de Atividades e Estudos Políticos), um centro liderado por um ex-guerrilheiro e exilado cearence, o Gilvan Rocha – a quem sou muito agradecido, ainda que ele mesmo não tenha sido capaz de suportar a capitulação de parte da esquerda e as frustrações pessoais suicidando-se. 

Não consegui terminar a escola secundária no Brasil, já que aquele lugar parecia um lugar hostil para mim e o movimento estudantil demandava muita atenção. 

Aos vinte e quatro anos me mudei para a Espanha por conta de uma relação afetiva com um espanhol. Não foi fácil. Eu não tinha permissão para trabalhar, só podia residir. Foram quatro anos de dependência. Quando a relação acabou, eu ainda estava esperando a permissão de trabalho, conquistada com a regularização. Morei primeiramente com amigos, por quem fui depois rechaçado. Mais tarde morei na casa de uma amiga que havia se mudado para Portugal com o marido. Sozinho, tive que me virar com o dinheirinho que ganhava fazendo uma limpeza por semana. Sobrevivi comendo macarrão e salsichas Frankfurt enquanto estudava para ser cabeleireiro. 

Quando finalmente a permissão de trabalho saiu voltei para Madri onde vivia, e ali, morei num abrigo para pessoas sem teto por 20 dias já que rapidamente consegui um meu primeiro trabalho e pude alugar um quarto. Mudei-me dali, após depois de uns meses de trabalho, para estar mais perto da escola de cabeleireiro, pois tinha que continuar o curso que era de dois anos. Estudava pela manhã até às 13h, depois trabalhava até às 21h. No sábado trabalhava o dia todo. As gorjetas que as clientes deixavam numa caixinha com os nomes dos empregados eram roubadas pela filha do dono do salão que era a caixa do local. 

Busquei outro trabalho num restaurante de comida rápida consegui terminar os estudos. Depois consegui trabalho num salão chique, segui como ajudante, lavando cabeças e ajudando a fazer coloração o dia todo. O mês de dezembro tínhamos que trabalhar todos os fins de semana. 

Eu sentia que só trabalhava e o dinheiro não dava com na canção do Legião Urbana. Tentava melhorar meu inglês com cursinhos subvencionados pela União Europeia e buscava incessantemente outro trabalho. Finalmente consegui um trabalho melhor, no setor do turismo, reservando leitos de hotéis para agencias de turismo portuguesas.

Queria melhorar minha posição na empresa mas meu inglês não era suficiente para trabalhar em outro departamento, assim que quando foi o momento de renovar ou encerrar meu contrato decidi encerrá-lo e me mudar para a Inglaterra. 

Nesse momento eu já contava com meu passaporte espanhol e podia trabalhar no Reino Unido. Ali passei, digamos a “chuva” da crise mundial do capitalismo de 2008. Vivi vários meses do meu seguro desemprego da Espanha e das minhas economias. Tive que pagar a agencias para conseguir um trabalho. Trabalhei inicialmente de limpeza, me levantado de madrugada; depois ia para um restaurante. Trabalhava o dia todo. Até que não aguentei mais e por sorte consegui um trabalho numa agencia de envio de dinheiro. Foi ai que eu me dei contar que como era morar num país onde você realmente é estrangeiro e a única saída era ter estudos nesse país. Nada do que eu tinha feito antes valia de alguma coisa em Londres. 

Londres 2006
Formatura em Londres 2011

A empresa onde eu trabalhava fechou e eu perdi o emprego. Então eu consegui um emprego de limpeza num ministério. Decidi fazer um curso de acesso à universidade em Documentário enquanto trabalhava de “cleaner” (faxineiro) pela noite. Depois do curso entrei para uma universidade no leste de Londres onde aceitam muitos imigrantes. Devido a já ser europeu não tive que pagar enquanto estava estudando. Até pude receber algum dinheiro para ajudar nas despesas. 

Foi nesse momento que conheci meu marido. Mas quando eu terminei o que eu queria era voltar para o Brasil já que era a era dos governos do PT. A imagem do Brasil estava bombando e eu queria fazer cinema na minha terra, finalmente. Mas ainda que tenha ido morar em São Paulo, eu já tinha uma relação e foi essa relação que me trouxe de volta. Desta vez, não a Londres, mas a Bruxelas, capital da União Europeia. Aqui eu tive que aprender (e ainda estou aprendendo de certa maneira) outra língua, o francês.

Depois de 2 anos decidi junto com meu marido que eu iria fazer um mestrado em cinema na Holanda. Tal mestrado não me ajudou em nada na minha volta a Bruxelas pois para meu espanto, a Bélgica não reconhece esses estudos e não consegui arranjar nenhum trabalho na área. Diante da frustração decidi fazer outro mestrado, mas agora em outra área, não muito distante porém mais necessária no mundo que vivemos: a Comunicação e a Educação na internet. Foram dois anos cursando estes estudo numa universidade espanhola à distância. 

Bruxelas 2021 –
Mestrado em Comunicação e Educação na Internet

Acho bastante equivocado uma pessoa querer dizer que estes estudos não fazem parte da minha identidade. É até autoritário querer dizer o que tem e o que não tem que fazer parte do que eu sou, ou de como eu me sinto. 

A identidade é uma coisa muito complexa. Não é só como as pessoas nos veem, mas também como eu me sinto e vice-versa. Nós precisamos realmente entender a questão da identidade, já que as identidades não são por si só boas ou más. Vale lembrar que hoje o grupo de extrema direita no Parlamento Europeu se chama Identidade e Democracia. Muitas vezes a identidade é reclamada como projeto conservador, por exemplo através do conceito de “Englishness” na Inglaterra, ou da identidade francesa na França, países que têm uma forte presença de imigrantes. Estes conceitos são usados para criar uma alteridade, uma distinção uma separação com o outro. 

A existência das diferentes identidades é um fenômeno eminentemente moderno, o que por um lado é bastante positivo pois se opõe à homogeneização fascista (vejam que o fascismo pretende eliminar as diferenças e impor um regime sem fissuras); por outro é incentivado pelo poder de sedução do capitalismo já que a produção de identidades, muitas vezes flutuantes, não produz necessariamente sujeitos, mas consumidores especializados. 

Infelizmente, não se encontra lugar dentro do espectro da esquerda hoje em dia para se aprofundar nos assuntos. O homo faber ( o homem que faz) e o homo communicans (o homem que compartilha), predomina sobre o Homo sapiens, já estes não estão muitos preocupados com o saber, com a ciência. Ele desconfia da ciência e a acusa de separar os homens. Os Homo fabers e Comminicans da esquerda se esquecem que os grandes fundadores da esquerda moderna eram por um lado um teórico da ciência política, econômica e filosófica (Karl Marx) e um burguês (Friedrich Engels). Dois homens europeus e brancos. 

Meritocracia é uma palavra problemática já que pode levar as pessoas dadas ao pensamento rápido (o pensamento não profundo) a imaginar que o problema está nos méritos em si, porém o problema da meritocracia não os méritos, mas no discurso que esconde as estruturas de desigualdade que mitigam as oportunidades dos indivíduos de conseguirem seus méritos. 

Quando o filho de um diretor de uma grande empresa diz que entrou nessa empresa por seus méritos, possivelmente isso seja uma mentira para justificar sua posição. Mas quando uma sociedade dá as oportunidades aos indivíduos de conseguir lograr aquilo que anseiam isso não é meritocracia, mas justiça social. 

Espero um dia se visto como alguém que tem algo a aportar ao crescimento da sociedade e não somente alguém que tem estudos, ou que pode ajudar a eleger um candidato ou aumentar a popularidade de um projeto, mas que não acrescenta conteúdo às discussões ou ajuda a dissipar as trevas da ignorância. 


Ermeson Vieira Gondim é cearense de Quixeramobim, co-fundador do comitê Lula Livre em Bruxelas. É Mestre em Comunicação e Educação na Internet pela UNED (Espanha), Mestre em Cinematologia pela Universidade de Amsterdã, Bacharel em Filme e Vídeo pela Universidade do Leste de Londres. Tem organizado cursos de cinema e realizado filmes além de colaborar com a Fibra.

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Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pelo autor, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.

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