Por Selma Vital, para o site da Fibra.
22.01.2022
“…e no entanto é preciso cantar,
mais que nunca é preciso cantar,
é preciso cantar e alegrar a cidade”
(Carlos Lyra &Vinícius de Morais)
Em meio à indignação geral (e constante) e das discussões sobre a sabotagem do governo federal contra a vacinação infantil, dois dias de janeiro, em particular, chamaram a atenção. No dia 19 de janeiro, enquanto observávamos os 40 anos do aniversário de morte de Elis Regina, também se celebravam os 80 anos de nascimento de Nara Leão. Distintas em tantas maneiras, a data de alguma forma as unia.
Um dia depois, ainda com as canções das duas musas fresquinhas nos corações e mentes, chega a notícia da morte de Elza Soares, a icônica cantora que se despediu em plena atividade, com um histórico de 70 anos de carreira.
Ao contrário de Nara e Elis, que morreram jovens, Elis aos 36, Nara aos 47, Elza viveu 91 anos de forma intensa. E se não deve surpreender que alguém morra em tão avançada idade, a morte de Elza parece ter, sim, pego muita gente de surpresa. Como disse meu filho adolescente, era como se ela fosse viver pra sempre. Talvez ela nos fizesse crer, nem que fosse por um fugidio momento, em nossa própria longevidade. Afinal, não é todo dia que uma cantora chega a esta idade… cantando. E cantando para públicos diversos, incluindo muitos jovens porque seu ritmo, sua mensagem, nunca de fato envelheceram. É só notar quantos artistas de outras gerações, como Pitty, Liniker, Tulipa Ruiz e Criolo estiveram ao lado dela. Todos, aliás, com um ar de reverência reservado aos grandes ídolos.
Tudo isso é verdade, mas havia mais do que longevidade e energia no apelo de Elza Soares a um público menos tradicional. Vinda da pobreza extrema, mulher e negra, sua trajetória reúne todos os ingredientes de um drama: casamento forçado ainda na pré-adolescência, perdas, tragédias e um grande amor (o “anjo das pernas tortas”, Mané Garrincha, traria para a vida da musa suas próprias turbulências). Sem contar o exílio “voluntário” do casal e família na Itália, em 1970, depois que a fachada da casa deles foi atacada com uma saraivada de tiros, supostamente a mando dos milicos no poder. A biografia da diva foi também coroada por seu posicionamento político. Sua irreverência, seu grito contra o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, a violência contra as mulheres e os pobres em geral a marcaram como referência e a tornaram sempre uma mulher que nunca parou no tempo.
Em 2015, no álbum A Mulher do Fim do Mundo, a canção de mesmo nome, de autoria de Rômulo Froes e Alice Coutinho traduz (e resume) o projeto de vida de Elza, plenamente cumprido: “Mulher do fim do mundo/Eu sou e vou até o fim cantar”. Um mês antes de sua morte, fez seu último show em Belém do Pará e tinha shows agendados até o segundo semestre de 2022.
Sua personalidade audaciosa, não conformista, muito à frente de seu tempo nem sempre foi fácil de se encaixar no cenário acanhado e burguês das nossas artes. Sempre tentaram enquadrá-la no espaço do samba, como se este fosse o único para uma mulher negra no Brasil. Em texto recente, o cineasta Ugo Giorgetti analisa: “- Diziam que a Bossa Nova tinha enorme influência do Jazz. Não tinha. Quem tinha influência do Jazz era Elza Soares, com sua voz crispada, seus improvisos súbitos no meio da música, que a transformavam numa cantora fora dos padrões brasileiros consagrados, com seus efeitos rascantes, guturais, lembranças de negros americanos que ela, penso eu, só conhecia por instinto e por intuição”.
Em uma de suas já clássicas declarações, que agora pipoca por aí, Elza lembra de sua estreia num programa de rádio comandado por Ary Barroso, em 1953. Ela ganhou o prêmio em dinheiro que precisava para alimentar o filho mal nutrido, à beirra da morte. Subiu ao palco em meio a chacotas, inclusive do próprio apresentador, mas respondeu à altura.
“- O que você veio fazer aqui, menina?”
“- Eu vim cantar!”
“- Me diz uma coisa, de que planeta você veio?”
“- Do mesmo planeta que o seu, Seu Ary.”
“- E qual é o meu planeta?”
“- Planeta fome.”
“- Naquela época…”, disse ela, “…eu achava que se tivesse alimentos pros meus filhos, não teria mais fome. O tempo passou e eu continuei com fome, fome de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade e muito mais, percebo que a fome só muda de cara, mas não tem fim. Há sempre um vazio que a gente não consegue preencher e talvez seja essa mesma a razão da nossa existência”, filosofou.
Muito antes que a minha geração cantasse os versos dos Titãs: “Você tem fome de quê?/ A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”, uma mulher negra que já tinha vivido mais do que muitas mulheres da sua idade, tinha sacado tudo: que temos direito a muito mais do que a simples sobrevivência.
Na mesma semana dos eventos que comento aqui, mais especificamente no dia 19 de janeiro, Lula disse em entrevista à Forum que: “- Não vai ter mais só um ministro de Cultura [mas] um comitê de Cultura. Pra gente dizer pra eles que a Cultura vai ajudar a construir esse país mais democrático”(…) “então, quem tiver medo de Cultura se prepare, porque vai funcionar mais forte no próximo governo”, acrescentou. Uma declaração que é música para nossos ouvidos carentes de boas novas e que se concretizada de alguma forma vai estar honrando o legado de Elza Soares. Ela não vai estar aqui pra ver, mas espero que a gente veja e celebre cantando muito para alegrar todas as cidades, do país inteiro.
Evoé. Elza Soares!
Selma Vital é jornalista e professora. Fez parte do Coletivo Aurora, de Aarhus (Dinamarca) e agora é membra independente da Fibra, morando na Carolina do Norte, EUA.
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Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos como tal pela autora, sendo por tanto de sua exclusiva responsabilidade.