@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor. Barcelona.
31 de janeiro de 2022
“Um dia vestido de saudade viva faz ressuscitar.
Casas mal vividas, camas repartidas, faz se revelar.
Quando a gente tenta de toda maneira dele se guardar,
sentimento ilhado, morto, amordaçado, volta a incomodar”
(Raimundo Fagner)
Música, emoção, política. Vida! Indissociavelmente, inseparavelmente… de forma coerente.
Não sei viver sem música. É um vício. Admito.
Assim como já não consigo começar um texto sem epigrafar com um trecho de música. Percebeu?
Eu sempre fui de escutar coisas novas, mais que as velhas, repetidas vezes. Me ajuda muito a lidar com as minhas felissaudades, de quem mora “longe”. Além do tempo que me separa de quando eu as conheci. Se não posso agora mesmo voltar às terras, aquelas…, me conformo em sentir que, igualmente, me separam delas, das canções e momentos, daqueles sentimentos, o não poder voltar no tempo. Ainda bem. Não há mal que não venha para o bem.
Na sindemia, confinado, em casa, descobri que há mais músicas entre o céu e a terra do que possa supor minha vã filosofia. A cada dia, há uma alegre revelação. E o tempo é ouro para o meu jovem coração.
Fico pensando na imensa quantidade de boas artistas que existem, sempre existiram, num país gigante como o Brasil, e que acabamos consumindo algumas mesmas de sempre (até do Chico!), processadas pelos mesmos filtros das grandes indústrias capitalistas. Nas artes, como um todo. Para cada bom livro que eu descubro “do nada”, fico pensando em quantos outros eu vou morrer sem nem saber que existem. Me concentro no que eu tenho e deixo de ficar antecipando sofrimento pelo que eu não tenho. Bem melhor assim.
E eis que não de repente, comecei eu mesmo a criar meus próprios filtros, por não separar arte, política, vida. Carrego tudo na comoção, até mais que na “mera” emoção.
Atribuí pontos, pra mim mesmo, às artistas negras, mulheres, trans, indígenas, quilombolas, sem-terra, e um imenso etecetera que eu nem queria escrever etecetera pra não resumir essa maravilhosa diversidade. Ganharam ponto, passaram na frente, no meu processo íntimo de reparação histórica.
Inatingível, inatacável. Sabe por quê? Porque é meu, dentro de mim, de mim pra mim, comigo mesmo.
Essa auto declaração afugenta fascistas e racionalistas (que nem sempre são os mesmos), pois não há margem de contestar o que eu sinto, o que é sentimento. E mesmo assim, de vez, em quando, ainda aparece alguém que se diz antifascista, equiparando-se a eles (aos que não respeitam os sentimentos) e ainda tenta se intrometer – não na minha vida, mas no meu íntimo.
E isso explica muito, no que eu sinto, sobre quem ainda tenta se meter com um cara como Chico.
Acho que foi a paternidade que me ensinou que quando um filho diz que sente algo, jamais devo dizer: “mas não foi nada; levanta e anda; isso não dói”.
Guardo uma mágoa angustiada de um grande amigo europeu – de enormes afinidades políticas comigo – que a cada vez que eu lhe confessava que me sentia mal, discriminado, por imigrante, ele tentava (mal) me ajudar explicando-me os seus problemas de haver nascido pobre. Empatia zero. Um sentimento jamais suplanta o outro. Podem até complementar-se, mas são únicos, antes de tudo. Tentar universalizá-los pode significar um terrível menosprezo PARA MIM.
Por isso, nem sempre um pouquinho menos do imenso velho da barba branca do século passado significa, automaticamente, maximizar o jovem negro favelado assassinado hoje. É compatível. Mas quem está morrendo a cada quatro horas, assassinado no Brasil de hoje em dia? Quem?
É claro que eu aceito o diálogo, mas não posso negar que eles só podem partir de algo. E esse algo, muito forte é o meu sentir.
Egoísta? Individualista? SINTO que não. Você ainda pode até pensar que sim. É o seu direito. Mas se assim o ENTENDEU, perdeu seu tempo. Não era pra entender nada. É pra sentir. E sentir pra mim é o que mais te legitima. Até mesmo – e principalmente – diferentemente o Teu do Meu sentir.
Fagner, por exemplo, eu não reescuto, apesar de estar ressignificando seus velhos discos, por ME permitir. Eu escuto as suas velhas músicas, por não gostar nada das mais recentes (assim como não gosto dos seus mais recentes depoimentos). Eu não me canso de escutar suas velhas composições como se fossem novas, buscando mais a base instrumental, que eu adoro. E ressignificando a poesia delas, para os meus atuais dias. Musicalidade (Hermeto Pascoal, Manassés, Robertinho…) e Poesia (Gullar, Manduka, Florbela..). Eu consigo seguir escutando e até gostando ainda mais das velhas músicas dele. Opera assim, dentro de mim, uma equação perene, mesmo sem pensar, nada racional, que flui, por ser muito (muito!) mais sentimento que pensamento. Eu me deixo levar por isso. E me sinto bem. Não é o que me importa?
Em quase tudo que eu escrevo, deixo sempre aparecer que eu, ultimamente, valorizo mais o sentir que qualquer vestígio do meu lado racional. E com isso eu te permito sentir o que quiser de mim. Claro.
Vamos ao Chico.
O privilégio de morar no exterior tirou-me coisas. Deu-me outras.
Não há nada comparável para mim (algum dia deixarei de reiterar o “para mim”, pois só escrevo mesmo o que eu sinto) com os momentos de êxtase, as epifanias de, longe de Olinda, ter nas mãos e começar a ler um novo livro de Chico, ou escutar um dos seus novos discos. É respeito muitíssimo.
Faz muitos anos que ele não canta essa música da qual todos falam e os jornais adoram que todo mundo fale, pra vender mais jornal – graças às redes sociais que lhes prejudicaram, aos jornais.
Pois eu dou-me o direito de não escutar mais nada que eu não queira – e vou escutar o universo infinito do que ainda quero e há pra escutar. Quem dirá do autor, que tanta emoção me deu, de deixar de fazer ou de dizer ou de querer ou de cantar ou de escutar o que saiu de dentro dele, ainda ontem ou décadas atrás? É Chico Buarque de Holanda, minha gente. Se fosse eu, até eu já podia. Imagina sendo um gênio. E isso não lhe obriga a gostar de tudo dele. Nem a ele dizer tudo o que queira, por dizer. Mas de expressar o seu sentimento sim. Basta eu gostar do que ele diz ou não. Criticar ou não. Comprar seu livro ou não. Falar mal do que ele fala ou não. Concordar com ele ou não. Mas, porque estou falando tanto dele?
Eu não quero que se intrometam nos meus sentimentos – a não ser que eu os queira declaradamente, explicitamente, manifestar em público, em dupla, ou nos meus textos, ou poesia…
Eu já não gosto dessa música, que continua sendo linda, mesmo se por mim já não gostada.
Se eu sentir que ela maltrata – algo ou alguém – eu te garanto que ela para mim passará a ser sentida como maltrato. E então, para mim (de novo, olha aí, “para mim”), é o que vale. O sentimento.
Isso elimina completamente algumas palavras do TEU vocabulário. Pode seguir gritando, claro, mas não me obrigue a escutá-las: vitimismo, mimimi, identitarismo, politicamente correto e outras merdas. Até aqui chegamos. E daqui, lamento informar que já não passas.
Aliás, não passarão. E eu, passarinho.
“Quem me levará sou eu. Quem regressará sou eu” (Fagner).
Viva Chico. E viva oS movimentoS feministas, no plural.
Com açúcar com afeto é para mim machista e ponto. Eu não mais a escutarei. Se até o cara deixou de cantar ela há décadas! Se até nisso o próprio Chico concordaria hoje comigo. Tenho tantas músicas dele pra escutar. Vejam o que acha de tudo disso um bolsonazista, aquele que inventou o politicamente correto somente pra seguir atacando com a incorreção política sua, de sempre.
Aquele abraço.
PS.: não esqueçamos jamais de uma coisa importante em todo o debate de reparação histórica. Cumprem explícito objetivo de chamar a atenção, trazer à superfície o que era somente uma discussão subterrânea. Porque alguém estava sendo privilegiado pelo fato de que o verdadeiro sentimento sobre aquilo estivesse durante todo esse tempo bem guardado, bem enterrado, com alguém sendo beneficiado. Enquanto outras quantas pessoas estavam sendo prejudicadas. Fazer-nos falar sobre algo que antes passou batido nos ajuda a pensar no que, de fato, passou batido. Foi a história, a canção, o tal contexto em que foi composta, a sociedade, que passou batida? Ou fomos nós mesmos que engolimos sem degustar, sem paladar, sem o sentir?
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