Por Ana Isa v Dijk, para o site da Fibra.
Holanda, 05 de março de 2022.
“You have to act as if it were possible
to radically transform the world.
And you have to do it all the time.”
(Ângela Davis)
Desde que entrei para o ativismo, fui me permitindo compreender ainda melhor o verdadeiro significado do 8M. Aos poucos fui absorvendo mais profundamente o sentido das lutas que este dia representa e desconstruindo a apropriação rasa que se fez no mundo capitalista, uma espécie de “concessão” (do patriarcado) indicando ao calendário ser dia de perfumes e rosas, poemas e delicadezas piegas, que servem mais como galanteios vazios, desmerecendo as lutas do que, para nós, mulheres, nos importam pautar!
Neste, como nos últimos anos, os preparativos para o 8M mostram que não somente as lutas continuam como se acrescentam a elas as ameças concretas, que rondam os conflitos armados, com desdobramentos do ódio que se concretizam em uso e abuso dos corpos e vidas das mulheres. Até aí nada de novo, infelizmente, afinal o mundo vive da guerra e na guerra e esse receituário de poder se repete ao arrepio do que se quer definido como Paz. A novidade é o cenário de guerra na Europa. Não pretendo adentrar em qualquer das versões ou preferências em que se debate a própria militância neste momento, sobre autorias de acordos e vilanias, o que nos afronta a todos é a violência covarde contra civis, disto parece, ninguém discorda!
Mas o que conecta este fato ao 8M? A fuga, ora bolas! Desde o início do conflito ouvi de minhas companheiras feministas do ativismo o recorte que melhor representa o que nos cabe nessas horas, e aliás como sempre! Alguém consegue tomar um copo dágua tranquilo ao ver na TV as hordas de mulheres, velhos e crianças fugindo da guerra num frio congelante? Na minha garganta simplesmente não desce….
Show de horrores entre machos a determinar mais esta sina sobre a vida das mulheres – nada mais atual, quanto antigo. Nesta, como em qualquer outra guerra, são elas vítimas inevitáveis de toda sorte de imposição e violências. A charge de Aroeira remete-me à imagem que trago na cabeça, desde o início. Uma imagem sintetizando grande parte da complexidade que nos atrapalha as análises.
As cenas de milhares de pessoas fugindo da Ucrânia nos últimos dias – que hoje já passa do milhão, são contundentes, arrasadoras. O que se vê são elas em fuga. De todas as idades. Em busca de refúgio, sozinhas ou acompanhadas de seus filhos (e tantas mais com seus animais domésticos). Seus rostos a espelhar a insanidade em que foram jogadas, buscando silenciar em si estrondos de balas e bombas, os lamentos vizinhos, o adeus de seus companheiros, o medo e a fome de suas crianças, o trauma surdo e ladino a assombrar seus incertos futuros….
Nada mais 8M que saber de tantas mulheres não brancas barradas nas fronteiras da Polônia, de famílias africanas arrancadas dos trens gratuitos a fim de dar lugar às famílias brancas, ambas assustadas e vulneráveis, é verdade, mas com todas e todos os envolvidos a reproduzir e vivenciar o racismo de sempre! Até quando? Até sempre, pelo visto….
Um 8M de dor nevrágica às mulheres trans de Kiev, Kharkiv ou qualquer outra cidade sob ataque, que preferem esconder-se na precariedade de escombros que ainda fumegam, a arriscarem-se na fuga do inferno imediato, pois sentem-se espreitadas – nas fronteiras, ou a caminho delas, sabem que os chacais do conservadorismo “cristão” e machista, dentro ou fora de casa estão sempre a postos e dispostos à violência.
Se por um lado, a mídia anuncia que UE em decisão histórica concederá a ucranianas, seus idosos e filhos o status de proteção automática: processo sumário que lhes permite alçar cidadania plena, entenda-se casa, trabalho e ajuda de custo, a internet está fervendo com os casos de jovens estudantes indianas, africanas, árabes, “acolhidas” nos países vizinhos enquanto esperam “retornar ao país de origem em segurança”. Cadê a proteção automática? Pra elas não vale. Eu diria que é a representação desavergonhada do velho peso e duas medidas, a guerra dentro da guerra. E se a guerra é criminosa, a xenofobia, o racismo e o ódio ao imigrante não branco é obsceno, assustador e real!
Uma crise que escancara praticamente todas as bandeiras do 8M. Para as mulheres que fogem da Ucrânia, a vida jamais será como antes, as cicatrizes e dores deste jogo de testosterona nuclear já lhes roubou parte da identidade, pois terão que reiventar-se na vida que segue. Quem há de se importar com o roubo de boa parte da essência de quem se acostumaram a ser? O que será feito dos pedaços de vida arrancados, despedaçados, abandonados pelo caminho que não imaginaram ter que seguir? E seguem-se outras guerras travadas neste exato momento em países que não dão manchete e por quem não se muda as cores do perfil das redes sociais.
Quem puder ir pra rua neste 8M vá! É urgente. Encerro lembrando que a luta da resistência internacional é essencialmente feminina e feminista. A jornada tem sido longa e os desafios diários, mas estamos trabalhando, dando voz e vez às nossas falas, porque como bem lembra A. Davis, é preciso fazer isso o tempo todo.
Dia 8 de março de 2022, vai lá e leva tua bandeira, teu cartaz, já chega né? Tá puxado….
Ana Isa v Dijk
Coletivo Amsterdam pela Democracia