O feminicídio avança. A indignação ainda espera.

Por Ana Isa v Dijk, para o site da Fibra.

Holanda, 02 de março de 2023.

Este texto é homenagem pessoal
às que ousam caminhar onde as querem tombadas,
às que ousam falar, onde as querem caladas,
e às que mesmo amadas, protegidas, emancipadas e livres,
ousam indignar-se quando as querem felizes e conformadas.
(Ana Isa van Dijk, autora)

Estamos às vésperas do 8 de março. Data que não começou com festa e não deveria ser lembrada com presentes, bolo ou flores ofertadas como galanteio! O dia é de luta e a história mostra que são muitas ainda neste século XXI!

A Holanda é um dos países mais desenvolvidos e ricos da Europa. Conhecido por sua agenda liberal na política e nos costumes, desfruta, via de regra, no imaginário popular, da confortável ideia que aqui se é livre para ser o que se quiser ser. A realidade de muitas mulheres no entanto está permeada de vivências violentas que não se alinham a este tal “senso comum” que pretende ser o contraponto civilizado se comparado aos “notórios machistas” latino-americanos ou seus vizinhos do sul europeu. Quando se fala de feminicídio a Holanda derrapa, e feio, nos fatos! Seja pelas estatísticas, seja pelo ensurdecedor silêncio social.

O início deste ano de 2023 trouxe à luz dos noticiários a palavra FEMICIDE (tradução holandesa de feminicídio), no bojo do julgamento de dois notórios casos de violência fatal cometida por ex-parceiros de mulheres assassinadas. A novidade foi o uso do conceito de feminicídio utilizado pela justiça para elevar as penas dos condenados já em grau de recurso.

Como assim novidade??? Para nós brasileiras, habituadas ao termo nas mídias em que rotineiramente navegamos é surpreendente o enorme desconhecimento do termo pela sociedade holandesa e, ainda mais chocante, o silêncio omisso das ruas diante dos números alarmantes e da brutalidade inegável que teima em ocupar espaço nos noticiários e nas estatísticas mais importantes do país.

A linguagem tem força e pode contribuir para o combate ou disfarçar a conivência com este tipo de crime, depende se a usamos como de hábito ou rejeitamos. O termo FEMICIDE (feminicídio em português), pasmem!, é ainda inexistente no dicionário mais consultado do país, o Van Dale. Diana Russel, criadora do termo FEMICIDE em 1976, afirmou que “não existe neutralidade de gênero na palavra assassinato”. Lotte Rensen, antiga membra do centro de estudos Atria – Atria Kennisinstituut voor Emancipatie en Vrouwengeschiedenis na Holanda, pautou em janeiro de 2022: “não chamem de violência doméstica, não há nada doméstico ali , … é assassinato de mulheres”. Ainda de acordo com a professora emérita da Universidade de Amsterdam, Renée Römkens, esta é uma discussão rapidamente rotulada como exagero: “Somos um país civilizado e somos emancipados. Temos dificuldade em reconhecer que há mais do que isso, ao contrário da Espanha ou da França”. Para ela, trata-se de uma epidemia silenciosa que se causasse algum distúrbio médico, “os alarmes já teriam soado há muito tempo!”

De acordo com dados do CBS – Centraal Bureau voor de Statistiek (o IBGE daqui), dois fatos chamam bastante a atenção. Para começar, não trabalham com o conceito e por isso não computam este tipo de violência como feminicídio. A seguir, a bizarrice do desprezo conceitual fica ainda mais evidente diante de seus próprios registros sobre assassinatos/gênero: quase 60% destas mulheres foram mortas por (ex-)companheiros (ver gráfico no vídeo aos 2’13’’), comparados aos 4% dos homens que perderam a vida em mesma situação. Por outro lado, os números holandeses mostram (ao contrário do que o imaginário comum acredita quanto ao quesito país-não-machista), que proporcionalmente a sua população, a Holanda amarga a 3a posição no ranking europeu de assassinatos de mulheres, perdendo somente para os escandinavos Suécia (1o) e Dinamarca (2o) e pouco acima da Finlândia (4o)! Estes números da Eurostat (o IBGE da Europa) revelam uma Holanda que assassina 1 mulher a cada 8 dias, independente de classe social, raça ou nível de instrução! Imagino o frio no estômago das muitas que diariamente temam ser a bola da vez!

Não são poucas as vozes que procuram alertar para a necessidade de dar nome específico a crime tão recorrente. No entanto, as observações da professora de Amsterdam e os termômetros ativados de algumas organizações sociais não têm tido força capaz de motivar a indignação e levá-las às ruas. A ausência de pressão popular talvez explique o pragmatismo conveniente da neutralidade da linguagem das políticas públicas, as quais pouco contribuem para uma leitura mais crítica dos sinais emitidos pelos males estruturais do patriarcado legados à sociedade holandesa. Emblemática a solicitação enviada em 22 de janeiro de 2022, por um membro do parlamento holandês questionando a ministra da Justiça e Segurança, Sra. Yeşilgöz-Zegerius sobre a necessidade de se criar uma lei específica para os casos de feminicídio; sua resposta foi taxativa: “Não há necessidade.” – de acordo com a ministra, o arcabouço legal existente, sem distinção, dá conta de todos os tipos de crimes. É a neutralidade das palavras que invisibiliza os riscos de morte de tantas mulheres e sequer serve de escudo aos que ficam para trás mortificados pela dor de suas perdas. E imagino que sobre riscos e perdas tal se repita no âmbito da comunidade LGBTQIA+.

Drama ou conflito familiar, crime passional, violência doméstica, defesa da honra, são todas expressões que se utilizam de palavras emocionalmente mais leves, quase romantizando a aceitação dessas ocorrências como parte da vida em comum, desprovidas do peso real com que percebemos e reagimos à ideia de um assassinato. Feminicídio é ao fim e ao cabo o resultado na prática e sem maquiagem das violências – potencial e real, que assombram as mulheres desde sempre e as atingem simplesmente por serem mulheres. É urgente, para ontem, nos educarmos todas e todos quanto à linguagem crítica, que pode sim nos cuidar e proteger, medida essa ao alcance de qualquer pessoa e sem custo ou dano a ninguém. Quem sabe assim tomamos as ruas, a meu ver única forma de pressão efetiva, para exigir do poder público que reconheça sua responsabilidade em participar do debate, dar nome ao feminicídio e aprofundar o combate à violência que rouba vidas e segue sorrateira até a próxima!

Ao contrário do que afirmo no início, festejo no 8 de março as pequenas vitórias, os passos talvez minúsculos para olhos desavisados, mas que significam o cruzar definitivo do limiar de uma fronteira que sinaliza a vida de muitas e a Paz para todas nós! Todas temos em nossa história de vida o contato com a violência de gênero. Seja conosco ou com quem amamos, esta violência nos atinge de uma forma ou de outra, por vezes mutila, revolta, entristece. Os espaços de superação se revezam continuamente, mas o que fazer com estas experiências?

Podemos seguir, cancelar, relembrar, lutar… Só não podemos desistir de nós! A luta é diária, mas no 8 de março paramos para que a violência pare de nos matar.

Ana Isa v Dijk
Integrante do Coletivo Amsterdam pela Democracia e da FIBRA.


Nota: Os textos, citações, e opiniões são fornecidos pela autora, sendo de sua exclusiva responsabilidade, e podem não expressar – no todo ou em parte, a opinião dos Coletivos da Fibra.

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